segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Nameless

Nameless
by Michelle Niella & Saulo Gonzaga
Iníciado em: 02 de abril de 2011 às 22:49


"Existem livros curtos que, para
entendê-los como merecem,
é preciso uma vida muito extensa."
-Francisco de Quevedo

 I

Era para ser um encontro normal, entre amigos, mas William não entende porque ninguém conversa com ele, nem ri de suas piadas. Um pouco irritado, ele anda de um lado ao outro e dá de cara com Julie, ela acabara de chegar. Quando a garota olha na direção dele é tomada de espanto! Ele se dirige ao encontro dela e de repente um telefone toca...

 William dá um pulo da cama com o som do telefone tocando. Ele atende e do outro lado som de festa, Julie pergunta: - Está tudo bem contigo? Porque não veio a festa? Acabei de chegar e... - receosa a garota não conclui a frase...
-Na verdade - diz William - Eu estava me arrumando para ir à festa, mas me senti um pouco tonto e resolvi encostar a cabeça por um instante. Acho que acabei dormindo. É engraçado, mas eu estava justamente sonhando que estava aí, foi tão real! Por isso não levantei antes. Eu acreditei que já estava aí! - diz ele, sorrindo.
Julie pensa por um instante, mas acha melhor não comentar nada a respeito da sensação de tê-lo visto na festa. A própria idéia em si lhe parece esquisita, desta forma apressou-se em desligar a ligação dizendo:
- Tá bom, tá bom, William. Arrume-se e venha logo, certo?
- Você é quem manda! - diz ele desligando o aparelho enquanto calçava o sapato.

 William termina de se arrumar e caminha até a garagem, olha para a moto, mas seguem em direção ao carro. Ao sentar-se sente, novamente, uma tontura e desmaia no banco do veículo. Em frações de segundos, ele se vê novamente na festa, só que, desta vez, do lado de fora da casa. Ele nota dois homens na rua rodeando os carros dos convidados e, ao olhar para trás, enxerga Julie saindo da casa em direção ao seu veículo. William avança, rapidamente, ao encontro da garota. Quando está próximo, ela o vê e dá um pulo para trás. De súbito, ele abre os olhos e percebe que ainda está no carro, pega o telefone e imediatamente liga para Julie. O telefone dela, entretanto, acaba caindo na caixa postal de mensagens. Ele liga o carro, abre a porta da garagem e sai em disparada. “O que terá acontecido?” - ele se pergunta.

 Ao aproximar-se do local da festa, ele consegue ver luzes azuis e vermelhas piscando. Sai do carro e, de imediato, identifica Julie sentada no interior de uma ambulância. Logo que se aproxima ela levanta e o abraça completamente abalada, explicando o que aconteceu:

 - Pouco depois que conversamos, eu me recordei que deixei alguns docinhos no carro, então resolvi sair para pegá-los. Eu estava aqui fora quando te vi... você parecia estar aqui, mas não estava... Você correu, em minha direção e desapareceu... eu não entendi nada, mas fiquei muito assustada... Voltei para dentro da casa, rapidamente, mas me senti mal, muito mal, então ligaram para o socorro e agora estou aqui... e você também! Já estavam me levando para o hospital, mas agora que você chegou eu me sinto melhor e não quero mais ir. - Julie sorriu tranqüila...

 Foi quando ouviram no rádio da ambulância um aviso de emergência. Curiosamente era para uma rua ali próxima. Pelo chamado era algo grave. O resgate saiu para o socorro e mais tarde eles souberam se tratar de um assalto, seguido de morte. Dois homens tentavam roubar um carro quando um casal retornou ao veículo...
William achou tudo aquilo muita coincidência e ficou preocupado. Começou a pensar se o que ele tinha visto e sentido naquela noite foi real mesmo ou fruto da sua imaginação. "O que está havendo comigo afinal?" - pensou ele.

 A festa aconteceu sem maiores incidentes e pela manhã, ao acordar, William já nem se lembrava direito o que acontecera na noite anterior. Era uma bela manhã de sábado e ele resolveu dar uma caminhada.

 Absorto em seus pensamentos, atravessou a rua sem se dar conta do carro que vinha no mesmo curso que o seu. Quando o veículo está próximo de atingi-lo, o motorista, que havia se distraído falando ao celular, pisa no freio bruscamente. O que acontece a seguir é quase surreal. William, tomado pela intensa descarga de adrenalina que o susto lhe provocou, olha para o lado e vê nitidamente o carro em câmera lenta. Na verdade, tudo ao seu redor está em velocidade muito lenta. A fruta que caiu da árvore paira no ar, o pássaro em seu vôo congelado no céu, mas não ele. Ele permanece normal. Do outro lado da rua, Julie, de camisola olha para ele. Um olhar congelado, assustador. Ele vai em sua direção, mas assim que seu pé direito toca o meio fio tudo volta ao normal. O carro freou atrás dele e Julie sumiu. No seu bolso algo vibra, é o seu celular, Julie ligando. Um pouco trêmulo ele atende e do outro lado soa uma voz aflita, de mulher:

 - William! William! Onde você está?
Ele tira o telefone do ouvido e olha para aparelho reconhecendo aquela voz, era Julie. “Nossa”, pensa ele e em seguida aproxima, novamente, o objeto da orelha. Tentando disfarçar o susto que acabara de passar, pergunta com ar de piada:

 - Que voz de espanto é esta? Aconteceu algo? -
Ela fala, apressadamente, que deseja conversar com o amigo. - Sei que não acredita nessas coisas, mas acho que estou tendo visões com você.
Silêncio do outro lado. Segundos depois, responde fingindo não se importar com o que ouviu ao mesmo tempo em que vira a cabeça para trás, olhando a pista que atravessou:
- Tudo bem, mais tarde passo na tua casa.
Mas a garota insiste que precisa ser naquele momento e diz que não quer deixar a conversa para depois, afinal, pensa ela, parece que já adiou tempo demais.
- Julie, sabe que horas são? Além de ser cedo, eu estou um pouco longe, resolvi saí para caminhar... Antes de concluir a frase é interrompido:
- Certo, onde você está? Diga-me que irei te encontrar.
Notando a insistência dela e conhecendo aquela garota, ele sabia que ela não desistiria enquanto não o encontrasse:
- Bem, deixe-me ver, eu estou... - Olhando para os lados William nota, assombrado, que está bem próximo a residência da sua amiga, todavia ele não entende como foi parar tão longe e nem como não sentiu que andou tanto, em tão pouco tempo. Eram quase cinco quadras da sua residência e ele, praticamente, acabara de sair de casa! -... Em frente a tua casa. - concluiu ele desligando o telefone.

 ***

 William bate à porta da frente e Julie atende, usando a mesma camisola que ele vira. De olhos arregalados, tenta dar bom dia, mas é puxado para dentro. Ela fecha a porta e antes de qualquer um dos dois se sentar o diálogo recomeça:

 - Eu sei, eu sei - diz ela, aceleradamente, de costas para ele - eu sei que você é extremamente racional e que não acredita nessas coisas, mas estou tendo estas visões e não sei o que está acontecendo. Acho que estou pirando e...
Jogando as mãos para cima, como se dissesse para ir mais devagar, o rapaz pede para ela ter calma e interrompe-a: - Eu também vi você - neste momento ela se vira e olha fixamente para ele. - e você estava usando essa mesma camisola horrorosa. - Aponta ele para a vestimenta. - Você é maluca de abrir a porta assim? Só faltou uma porção de bóbis e uma touca na cabeça - diz rindo e gesticulando, depois de sentar-se no sofá da sala.
Em pé e com olhar incisivo, Julie, pareceu não gostar da brincadeira. Não pela piada em si, mas por estar deveras conturbada.
- Não muda de assunto, não é hora de graça! - Eu estou falando sério! Você pode deixar de facécia por dez minutos? - William fica com o rosto vermelho e, com uma das mãos, faz um movimento circular, indicando para ela continuar.
- Conte-me o que está acontecendo - ele diz.
Julie senta no tapete em frente ao sofá, entrelaça as pernas, encosta um cotovelo em cada coxa e põe o queixo entre as duas mãos. Aquela era a sua posição pensativa, quando se sentia confusa era assim que gostava de ficar até passar a sensação ruim. - Há poucas semanas - Recomeça ela, agora, mais tranqüila e de olhar  perdido - eu acordei de madrugada e vi você dormindo na calçada do outro lado da rua, com lençol e tudo! Abri aporta, mas você tinha sumido. No dia seguinte você chegou resfriado no trabalho. Numa outra ocasião eu estava dormindo e subitamente senti um peso na cama. Completamente aterrorizada eu empurrei o peso até ele cair da cama e acendi a luz. Tive a impressão de lhe ter visto, mas não tinha nada lá. No dia seguinte você apareceu com uma mancha roxa no braço! Eu não falei nada, mas te vi na festa e vi hoje de manhã quando você ia ser atropelado. Eu achei que tudo era impressão minha, mas sinto que não é. William, tem alguma coisa acontecendo. - Conclui com um longo suspiro.
- Julie. Ontem a noite, depois que você me ligou eu apaguei, novamente, desta vez sentado no banco do carro, foi quando vi dois homens rondando por entre carros os carros estacionados perto da casa onde acontecia a festa. Olhei para trás e avistei você se dirigindo justamente para onde estavam os elementos. Não sei porque, mas senti que eles iam te machucar e por isso corri em tua direção. Seja lá o que esteja acontecendo, não é só com você. Eu também te vejo.
- Não é só isso. Há pouco você quase foi atropelado, não foi? William, ainda espantado com tantas coincidências, balança a cabeça afirmativamente. - Pois bem, eu presenciei tudo. Você teve alguma sensação estranha, naquela hora?
Lançando o pescoço para trás, ele se recorda do instante comentado e diz ter sentido como se o tempo estivesse parando. - Tudo pareceu acontecer muito vagarosamente... O carro avançou lentamente, as plantas balançavam em câmera lenta, o som quase sumiu... Estranho isso, concorda? De onde será que veio essa sensação?
Quase gaguejando Julie conclui que fora ela quem provocara o fato - Tenho certeza que eu tive alguma coisa haver com aquilo.
Sem entender, ele pede que ela explique o que acabara de dizer. Afinal, coincidências acontecem, mas controlar o tempo e o espaço já era demais! Mesmo para ele que era um entusiasta quando se tratava de ficção científica, acreditava que algo assim era impossível de acontecer na vida real.
Notando a cara de absurdo que ele fizera, Julie cora e meio acanhada continua - Na verdade, o que tenho certeza absoluta é que eu desejei aquilo. Eu vi o carro se aproximando e você atravessando a rua distraído, então quis que o tempo parasse e você saísse dali sem que nada te acontecesse... foi quando notei que tudo ao teu redor estava devagar, menos você, o mundo parecia se movimentar muito lentamente, mas você não. Era um sonho tão real que eu acordei sentindo o coração bater forte! O resto da história você sabe.
Ela termina de contar e volta o olhar para ele e aguardando sua reação ou uma palavra de desfecho para a conversa. Afinal, era com o William que estava falando e sabia que para ele toda  aquela narrativa soaria como insanidade. Mas para seu espanto ele, também, parecia perturbado e de olhar disperso.

 Os dois ficaram calados por um tempo como se um filme transmitisse, em suas mentes, aqueles últimos acontecimentos, fazendo-os recordar de cada situação minuciosamente. Mais uma vez, Julie, suspira fundo, levanta-se e, tentando disfarçar que estava aturdida, diz em tom de leveza, quase esboçando um sorriso: - Já tomou café? Essa conversa me abriu o apetite! - já se dirigindo para a cozinha -, venha, continuemos a falar, mas de barriga cheia!

 William a olha, como quem tenta entender como alguém pode pensar em comida, depois de toda aquela revelação, devagar balança a cabeça negativamente, mas a segue até o outro cômodo.

 ***

 Por um bom momento os dois ficam em completo silêncio. Mas suas mentes, inquietas, deixam transparecer certa angústia no ar. William sentado em um dos bancos mexia apenas os olhos, parecia conversar silenciosamente consigo mesmo, de vez em quando levava a mão direito ao queixo como se começasse a deduzir algo, logo em seguida e com a mesma mão coçava a cabeça, demonstrando incerteza. Enquanto isso, Julie preparava a bebida. Algumas vezes olhava para William, que não retribuía o olhar, outras abria e fechava as gavetas dos armários sem nada pegar ou abria a porta da geladeira, parava, observava e fechava, novamente.

 Uma voz quebra o gelo em um tom contrariado:
- Claro que não! Se você estiver, eu também estou!
William, assustado, vira-se na direção dela sem entender nada e pergunta: - Como assim “se você estiver, eu também estou”? Do que você está falando?
Sorrindo ela responde:
- Não te parece lógico? Você questionou se está ficando louco, mas esqueceu que isso, também, tem acontecido comigo. Se for assim, estamos enlouquecendo juntos!
- Mas eu não abri a boca! Diz ele, com os olhos bem abertos, em voz alta. Logo em seguida baixa o tom e continua... Bem, na verdade eu perguntei isso sim, mas em pensamento...

 Os dois se olham espantados e calados. A ausência completa de ruídos, entre eles, só é quebrada pelo apito da chaleira indicando que a água para o café está fervendo. Ocasião bem adequada para ambos saírem daquele mal-estar.

 - A água já ferveu - diz Julie, tentando disfarçar o embaraço. Em seguida, coloca um pouco do pó no coador e joga a água quente por cima. Logo, toda a cozinha está tomada por aquele cheiro inigualável de um bom café.

 - Sabe - diz William, também, ocultando seus sentimentos - eu sempre achei que se o café tivesse o mesmo sabor do cheiro que tem seria a melhor bebida do mundo!

 Julie abriu o forno e tirou de lá umas torradas que eles comeram com aquela bebida recém coada, mas sem trocar nenhuma palavra entre eles. Permaneceram algum tempo saboreando a refeição matinal, absortos em seus pensamentos, agora, pareciam um pouco menos tensos.

 - É verdade! - disse Julie rindo.
- O que é verdade?
- Ué? Você acabou de dizer que as coisas simples muitas vezes são maravilhosas, não foi?
William solta a torrada que estava em sua mão e pede que ela pare com aquilo. - Como se não bastassem os demais acontecimentos, agora vai ficar lendo minha mente é? Aliás, como é que você fez isso?
- Sinceramente? Não sei. Simplesmente ouvi você falando. Não consegui distinguir se você pronunciou, realmente, ou se, apenas, pensou. Pareceu tão natural quanto o que ouvi de ti, agora.

 William olha para a xícara com café, a sua frente, depois levanta a cabeça e solta um surpreendente - “Isso é incrível!”. E continua: - É incrível que isso, seja lá o que isto for, esteja acontecendo conosco. Será que existem outras pessoas que já passaram por algo semelhante?
- Difícil dizer - diz Julie. - Se bem que ainda não sabemos o que, verdadeiramente, está acontecendo. Muito menos o motivo, mas eu me recordei de algo...
Após uma curta pausa, pensativa, continua:
...Nós brincávamos assim quando crianças, na época soava mesmo como brincadeira, você não se recorda? Lembra que ninguém entendia quando nós dois ríamos? Nós víamos algo engraçado e trocávamos poucas palavras um com o outro sem abrir a boca e lá estávamos nós rindo, novamente!
Por não ser tão emotivo, William escuta sem dar muita importância, mas algumas leves imagens da infância surgem em sua mente:
- Verdade, tenho vagas lembranças, mas naquela época nós nunca nos questionamos como fazíamos aquilo, simplesmente fazíamos, como se fosse algo natural. Depois, afastamo-nos, os anos passaram, nós crescemos, a vida seguiu seu rumo e nós esquecemos toda aquela bobagem.
- Bobagem? Lá vem você com tua racionalidade! Olha só o que esta bobagem está nos causando hoje! Foi esta bobice que te trouxe até aqui. Parece, realmente, algo bobo?
- Julie, você nunca estudou nada sobre isto? Você quem sempre gostou desses assuntos paranormais. Bem, você sabe que eu sou deveras racional e tenho dificuldade de aceitar essas “coisas”, mas você não, você sempre se interessou por essas questões.
- Estudar mesmo eu nunca estudei, mas já li algumas matérias relacionadas e, se me recordo bem, meu pai tinha algum material sobre o tema. Não lembro ao certo, você sabe, meu pai sempre foi muito calado e sempre lia muito sobre tudo. Minha mãe dizia que para ele se tornar um cientista louco só faltavam os vidrinhos para as experiências e a cabeleira desarrumada!
- Verdade. Diz William rindo, recordo-me que ele lia muito e, ao contrário do meu pai, ele falava pouco. Acho que deveríamos conversar com ele. Quem sabe ele passou por algo semelhante, afinal quem se dedica ao estudo da paranormalidade deve praticá-la também. Vamos lá na casa dele? Aliás, depois que seus pais se mudaram, eu só os vejo nas reuniões ou em enterros! Até hoje não os visitei na casa nova. Estou devendo isso a eles! Onde é mesmo que fica a casa?
Julie estava pensativa, mas sorridente:
- Verdade, nos enterros não falta ninguém! É incrível como todos parecem gostar mais deste evento do que de outros mais festivos! Aliás, pouco depois que vovó Oma faleceu, papai se aposentou, a partir de então os dois saem muito pouco de casa. Diz ela em tom de lamento. Bem, a casa não fica muito longe daqui. De metrô a gente chega em 30 minutos. Falei com eles na semana passada, talvez seja bom fazermos uma surpresa.
- Está bem, boa idéia, vamos lá sim. Aproveitamos a visita, eu revejo os dois e nós conversamos sobre o assunto com teu pai. Vá logo se arrumar e lembre-se que você não vai casar, seja rápida! Diz William já se levantando.
Engraçadinho...
Ao passar por William, Julie recebe leves tapinhas nos glúteos e ouve-o dizer “Rápido, rápido!”, ela acelera os passos, tentando se livrar da brincadeira. Ao sair da cozinha, ela se dirige a sua suíte a fim de tomar banho. Era um quarto espaçoso e agradável, em sua pequena casa, onde morava só. Julie levava uma vida simples, embora fosse de família de classe média. Gostava de imóveis pequenos, com poucos móveis, mas para ela era importante que, do lado externo, tivesse um bom espaço para o quintal, ela gostava de cultivar algumas plantas e manter contato com a natureza. Podia passar boas horas fazendo aquilo que não notaria o passar do tempo!
Não demora muito e ela está de banho tomado e de roupa trocada.

 William levanta as mãos para os céus e exclama sorrindo:

 - Ah! Bem melhor que aquela camisola horrorosa!
- Horroroso é o teu passado. Pare de falar besteira! - responde ela, retribuindo o sorriso. Em seguida segue até a porta e olha para o amigo. Vamos? Quem sabe mamãe nos prepare um almoço delicioso!
- Hum! Isto sim seria matar a saudade! Vamos logo então! Nem passarei em casa, vou do jeito que estou, não sei como, mas nem cheguei a suar!
- Eca! Que nojo! Não vai tomar banho? Não fique perto de mim! Enquanto ela tenta afastá-lo, ele brinca finge tentar segurá-la. - Sai para lá, carnicinha, eu estou limpa e cheirosa! Conclui fechando a porta de entrada.

 Os dois descem caminhando para a estação de metrô mais próxima, pegam o trem e, durante um tempo, apreciam a viagem em silêncio.

 - Sabe - Começa ela - Nunca procurei entender certas atitudes de meu pai. Eu era criança, na época, e mamãe não gostava que eu me metesse em assuntos de adultos, mas lembro-me de certas condutas dele que, às vezes, assustava-me.
Estranhando aquelas palavras, William, demonstra não ter entendido e questiona o que exatamente ela queria dizer com aquilo.
- Lembro-me de acordar, a noite, com papai sentado na poltrona ao lado da minha cama. Ele dizia que estava vendo a bonequinha dele dormir. Geralmente eram nas minhas noites mais agitadas, quando eu acordava me sentindo cansada e às vezes até com gosto estranho na boca.
- Certeza que o gosto estranho era o início do bafo que você tem hoje.
- William!
- Desculpa, eu não resisti a piada. Mas Julie, eu não vejo nada de estranho em um pai zelar o sono da filha, a não ser que você suspeite que ele...
- De forma alguma! Não estou me referindo a nenhuma maldade dele para comigo, mas é que geralmente eu acordava assustada e aquilo ficava na minha cabeça até eu conseguir adormecer, novamente.

 A viagem foi tranqüila, enquanto os dois conversam, o metrô se aproxima da estação de destino. Ao ouvir o aviso do transporte, indicando a próxima parada, Julie levanta, seguida por William. Os dois se preparam para descer. Em pouco tempo as portas se abrem e eles já estão na superfície.

 Ainda na saída da estação Julie questiona se o amigo se importa de ir caminhando e demonstrando indiferença ela continua: - Não é muito distante daqui, uns 15 a 20 quarteirões.

 Os olhos do rapaz arregalam, ele pára, segura o braço esquerdo dela, olha-a fixamente e diz:

 - Andar 20 quarteirões? Você enlouqueceu?

 Julie solta uma gargalhada, em seguida, e ainda sorrindo, aproxima a sua mão do rosto dele apertando-lhe uma das bochechas:

 - É brincadeira, bobinho, não mais que 15 ou 20 minutinhos, andando!

 William relaxa os ombros:

 - Caramba, que susto você me deu! Achei que estava falando sério. Quase morro de susto! - Diz ele, agora rindo bastante.

 Os dois seguem caminhando, enquanto Julie mostra alguns pontos do bairro para ele. Depois de pouco mais que 15 minutos eles entram em um quarteirão.

 - A rua em que meus pais moram é aquela. Basta dobrar alí que já dá para ver a casa. - Diz ela apontando para a esquina de um edifício todo de tijolos vermelhos.
Assim que se aproximam da esquina um clarão, rápido como um flash, ofusca a visão dos dois por décimos de segundo. Julie sente um frio na barriga como se estivesse em uma curta queda livre e segura no braço de William.
- O que houve? Está tudo bem? Pergunta ele, assustado.
Após respirar, ela levanta a cabeça e pergunta se ele não sentira nada.
- Senti o que? Você quer saber se eu vi o brilho? Com certeza o reflexo do Sol em uma janela  de um desses prédios. Incomodou um pouco os olhos, mas nada mais que isso. O que você sentiu?
  - Ah. Nada demais, acho que. Tudo bem... Esquece. Vamos, agora falta pouquíssimo. Diz ela já soltando o braço do rapaz e voltando a andar. - Apesar de calado meu pai sempre teve um excelente senso de humor. Sempre tinha uma piada que nos fazia rir e, também, refletir. Meu tio Rubens, irmão de meu pai, recorda-se dele? William balança a cabeça afirmativamente. Bem, ele e dois primos de papai se reuniram aqui mesmo na semana passada. Fizeram uma surpresa. Ele me ligou todo feliz para contar. Ele até me recordou daquela peça que criou e preparou-nos para uma apresentação no Natal, você lembra? Foi o maior barato! Será que alguém tem uma foto daquele dia? Aposto que... - Julie pára e fica congelada.
- O que foi? - Pergunta William sem entender. - Onde fica a casa? Ele olha para frente tentando identificar a residência.
Atônita, Julie tenta falar, mas só consegue balbuciar algo parecido com - É... Bem é ali... - Aponta para o lugar onde deveria estar o imóvel, mas ao invés da residência havia um enorme shopping center.

 II

 Chovia naquela madrugada de abril do ano de 1975. Uma mulher andava sozinha pelas ruas daquela cidade, chorava, levando no colo uma criança aparentando 3 meses de idade. Nas ruas completamente desertas só se ouvia o zumbido do vento frio corta o ar, fazendo-a tremer. Nota-se no andar dela, um misto de medo e de frio. Quanto à criança, esta está relativamente bem agasalhada, mas percebe-se uma aparente fragilidade em sua face infantil. Ela pára em frente a um orfanato, abre o portão e adentra pelo jardim. Ao chegar à porta vê que elas estão trancadas, de modo que a mulher se abaixa e deposita aquele pequenino embrulho com a criança dentro e deixa-a no parapeito da porta da frente. Em seguida dá as costas e acelera os passos o máximo que pode. Ao ultrapassar o portão, olha para trás. Agarra-se aquela grade de metal como um ato de desespero, seus ombros caem para frente, junto com sua cabeça. Após alguns instantes a mulher suspira profundamente, solta o portão, volta-se para a rua e corre ao mesmo tempo em que parece enxugar às lágrimas. Aos poucos a sua imagem se torna uma sombra, até desaparecer em meio à chuva e à escuridão.

 Ainda é madrugada quando Nydia, uma senhora solteira responsável por aquela instituição de acolhimento infantil, levanta-se para beber um pouco de água. Ao descer as escadas, passa perto da porta da frente, ouve um barulho que mais parecia um miado e resolve abrir a porta para verificar. Ao olhar para baixo, nota o pequeno pacote que a surpreende. Imediatamente, pega a criança nos braços, levando-a para dentro. Antes de fechar a porta ela observa o chão tentando encontrar algum bilhete, mas nada fora deixado junto à criança. O bebê permanecia enrolado ao lençol que agora está completamente encharcado, fazendo-o tremer de frio e chorar muito baixinho. Seus lábios estão um pouco arroxeados indicando um possível estado inicial de hipotermia. Nydia, sobe para um dos aposentos e, sussurrando, acorda sua colega pedindo que ela esquente uma porção de água a fim de banhar a pobre criança. O gostoso banho quente faz-lhe voltar a cor vermelha dos lábios e a aparência mais saudável da pele. Ela descobre que se trata de um menino. Logo, a criança está tomando uma mamadeira de leite morno com avidez - Ele estava com muita fome! - Diz ela, sorrindo. Nesse instante, a criança olha carinhosamente para aquela senhora e responde com um maravilhoso sorriso, como se entendesse todo aquele gesto de amor que acabara de receber. As duas senhoras se entreolham e seus olhos se banham de água.

 - Pois é, Raquel, o pobrezinho passou a noite ao relento.
- Minha nossa! Quem seria capaz de um gesto desses?
- No mundo existe gente de todo o tipo e cada um com suas dores, não podemos julgar, só entregar nas mãos de Deus!
- A justiça dos homens pode ser falha, mas Deus tudo vê. Sua justiça é certa!

 Às duas senhoras providenciam uma roupinha para à criança, apesar de não haver na instituição outra naquela mesma idade, conseguiram uma blusinha quente que lhe serviu de traje, uma meia velha e um pequeno cobertor  para lhe esquentar naquele final de noite. A criança, agora com aparência bem mais serena, logo adormeceu e, após isso, ambas as senhoras voltaram a dormir.

 São 10 horas da manhã. No orfanato todos estão de pé, as criança já de banho e café tomado. O bebê que fora encontrado durante a madrugada, acaba de acordar chorando e logo se torna uma atração para as outras crianças. Nydia vai até seu pequeno berço improvisado e o toma nos braços. Com aquele gesto de afeto a criança logo se acalma e pára de chorar. Em seguida, Nydia pega o telefone e entra em contato com o juizado de menores da cidade para contar o ocorrido e providenciar a devida regularização a fim de que o bebê fique no orfanato até sua possível adoção ou quem sabe até que sua mãe, arrependida, apareça para procurá-lo.

 A notícia, da criança abandonada, logo se espalhou pela cidade. A história foi divulgada em diversas mídias. Não demorou muito para que jovens casais, sem filhos, visitassem o orfanato, interessados em conhecer e adotar aquela criança. Muitos candidatos com potencial socio-econômico apareceram, porém havia um que se destacava entre os outros. Já não eram tão jovens, contudo toda vez que visitavam a criança ela se comportava absolutamente feliz, como se desejasse ser adotada por eles.

 O senhor e a senhora Louren era um casal de classe média, ele com 40 e ela com 38 anos, donos de uma organização tradicional de médio porte da cidade. De família burguesa e religiosa, eram conhecidos por, junto com familiares, ajudarem algumas instituições de caridade. Ele era alto e branco, cabelos loiros, lisos e olhos azuis, tinha um andar elegante e era muito cortês. O tipo de homem que chamava atenção, mesmo desarrumado. Ela, com seus 1.65m, tinha pele morena, sempre bronzeada, cabelos cor de mel, com leves cachos nas pontas e olhos castanhos claros, vivia sorrindo, era sempre bela e doce. Como todo casal, sempre sonharam em construir uma família, porém os médicos nunca explicaram porque eles não conseguiam ter filhos. Ao saber da criança, a senhora Louren desejou muito tê-la nos braços e poder um dia ser chamada de mãe. O casal iniciou sua incansável busca pela adoção.

 Algumas semanas se passam e em uma certa manhã, eles retornam a instituição e são recepcionados pela senhora Nydia, mas desta vez ela demonstra um semblante agradavelmente feliz e começa a falar enquanto os cumprimenta:

 - Senhor e Senhora Louren, tenho boas notícias!
O casal se entreolha e ela continua:
- Esta manhã, recebi uma ligação do juizado e vocês foram selecionados para a adoção do pequeno William! Parabéns aos mais novos papai e mamãe!

 Emocionados, os dois se abraçam e choram. Logo eles correm para ver aquele que seria, durante muitos anos, o motivo de grandes alegrias em suas vidas. Ao entrar no quarto, a criança parecia esperar pelos dois, a senhora Louren se inclina e cuidadosamente carrega a criança que parece abrir os braços para ela. A mulher não resiste e encosta a criança em seu ventre dando-lhe um suave e amoroso abraço. O marido tem o mesmo impulso e aproxima-se dos dois envolvendo-os com a mesma ternura.

 - Lúcia, meu amor, sinto que esta criança será motivo de orgulho para nós dois.
- Tenho a mesma sensação que você, meu amado. Percebo nela uma energia envolvente e acredito que não fomos nós quem a escolhemos e sim ela a nós dois.

 Após aguardar aquele primeiro momento, que foi observado alegremente pela coordenadora da instituição, a senhora Nydia se aproxima do casal para conversar sobre o processo final de adoção. Eles escutam tudo muito atentamente e a criança adormece nos braços da nova mãe.

 - Bem, isto é tudo. Conclui Nydia. Desejo, do fundo do meu coração, que esta nova família seja imensamente feliz, com a Graça do Pai Celestial!
- Nosso filho receberá muito amor e estará sempre rodeado de pessoas generosas que o ensinarão as maravilhas de uma vida feliz, em família. Responde a senhora Louren, abraçando a outra mulher, como gesto de agradecimento.
- Muito obrigada, Nydia. Diz o senhor Louren, apertando a mão da senhora.
- Eu quem agradeço a vocês por já demonstrarem tamanho amor a esta criança e também ao Pai Divino por dar a ela uma família merecedora.

 Desta forma o casal se despediu da coordenadora, levando com eles o filho abençoado. Ao sair do orfanato, trataram logo de ligar para os seus familiares que muito apoiaram naqueles últimos dias. Ao saber da notícia, toda a família foi visitar o casal, inclusive a irmã da senhora Louren. Laura era a mais nova das duas irmãs, uma senhora de pele morena clara e olhos bem negros, cabelos lisos e igualmente negros que estavam sempre bem arrumados, sua aparência era de uma mulher frágil, mas no seu interior havia uma mulher sensível e tranqüila. Fazia poucos meses dera a luz a uma doce menina. Em homenagem a esta sobrinha, o casal resolveu registrar o menino com a mesma data de nascimento.

 A família toda logo se encantou com aquele bebê, um menino tranqüilo, quase não chorava. William foi acolhido por todos como um verdadeiro membro da família. Por não ter gerado o menino, a senhora Lúcia não tinha leite, ao contrário da sua irmã Laura que tinha bastante, mas não foi necessário pedir, a irmã se ofereceu e tornou-se mãe de leite do sobrinho, que por sinal era sempre muito esfomeado, agarrava o peito da tia com tamanha vontade que ela, às vezes, soltava pequenos gritos, mas logo caia na risada!

 - Minha nossa Lúcia, este teu menino não sacia nunca! Dizia ela brincando.
- Ainda bem que tua filha ainda é muito nova para reclamar os direitos dela! Respondia a irmã sorrindo.

 Assim o pequeno William foi crescendo, cercado de muito amor e carinho. Ao lado de sua prima, os dois conviviam quase como irmãos. Logo cedo, aprenderam a aprontar e eram tão unidos que um encobria as peraltagens do outro.



 III

 O sol entrando pela janela chega até à cama e bate nos pés descobertos da menina, fazendo-a sentir um pouco de calor. Logo ela já está de pé e segue para o banheiro cambaleando um pouco. Olha-se no espelho, vê seu rosto metade amassado com as dobras do travesseiro desenhadas na pele e ri sozinha com aquela cena. Escova os dentes, toma um banho e veste a farda da escola.

 - Você está atrasada, mocinha! - Diz sua mãe assim que ela desponta na escada. - Não faça barulho para descer os degraus, eu já não te disse isso mil vezes?
- Desculpa mamãe. Responde a garota entre bocejos e espreguiço, ainda, com olhos mareados de sono.
- Tudo bem. Venha logo tomar seu café.
Ao descer as escadas, aquela garota baixinha, branca, sempre balançava os cabelos, era de costume, pois ela adorava os cachos dourados que tinha neles. A mãe achava graça e a esperava no final dos degraus para dar-lhe um abraço.
- Bom dia, família! - Diz um menino, entrando pela porta da cozinha. Era um garoto moreno, esguio para quem tinha 10 anos de idade, cabelos lisos e olhos amendoados.
- O que você está fazendo aqui? - Pergunta a menina.
- Vamos para escola, oras. Meu pai está aí na frente com o carro ligado. Ele fala e aponta para a porta da sala. - Vamos?
- Vamos sim. Mamãe, você pode colocar essas torradinhas num saquinho de papel? Eu vou comer no caminho.
- Filha... Você sabe que eu não gosto que coma dessa maneira, mas você está atrasada, então não vejo muita alternativa. Tome, leve a caixinha de suco!
- Está bem, está bem. - Ela sobe para pegar a mochila e logo os dois estão no banco de trás do carro de seu tio Louren.
- William, porque você veio me buscar? Pergunta enquanto guarda o pacote na mochila.
- Porque você acordou tarde, oras.
- Mas como você sabia disso? Você ligou para mamãe?
- Não.
- Ela te ligou?
- Também, não. Responde ele demonstrando indiferença, mas tentando deixá-la curiosa.
- Então como? Fala logo! Como você sabia que eu estava atrasada?
- Foi o diretor da escola quem me avisou. Diz ele a olhando de lado e tentando não rir.
- O diretor? Ela faz um olha de espanto. - Sério?
- Claro que não bobinha! Ele começa e rir, enquanto ela se emburra.
- Vai falar ou não vai? Já com voz de brava.
- Eu não sei. Eu sabia que você estava dormindo quando eu saí de casa.
- Mas, sabia como?
- Sei lá, Julie! Eu só sabia. Você estava atrasada e ia chegar tarde na escola, não era? - Ela consente com a cabeça. Eu vim te buscar, não vim? Qual o problema?
- Problema nenhum, William. Desculpa! Muito obrigado por vir me buscar, está bom agora?
- Eu, hein!

 Nesse instante casa um vira o rosto para o lado oposto do outro. Na frente, dirigindo, o senhor Louren acompanha a discussão, pelo retrovisor, depois de sorrir ele diz:

 - Vocês dois podem parar com isso? Com vocês é sempre oito ou oitenta! Ou brigam demais ou se amam muito, quem entende? - Conclui ele soltando uma gargalhada.

 Não demora o carro pára na porta da escola, os dois descem apressados e passam pelo portão que já estava fechando.

 - Poxa... Quase que a gente não consegue entrar - diz William ainda ajeitando a mochila nas costas. Enquanto isso Julie acelera os passos e fala apressadamente:
- É, mas a gente conseguiu. Vamos logo para sala.

 Os dois saem correndo em disparada, entrando pela porta principal e passam pelo pátio central da escola, agora vazio, pois todos os alunos já estão em suas salas. Sobem um lance de escadas e seguem para o final do corredor do primeiro andar.
Eles param na frente da sala. A porta está fechada, mas não trancada. Julie gira a maçaneta e entra seguida por William, ambos com o maior cuidado para não fazerem barulho. Mesmo assim, a professora percebe a chegada dos dois e interrompe a aula.

 Valneide, chamada pelos alunos simplesmente de Dona Val, é professora de matemática da quarta série do ensino fundamental. Tida pela maioria como carrasca, ela faz o estilo linha dura com os alunos. Não os deixa sair no meio da aula, nem mesmo para ir ao banheiro, pois prega a disciplina a todo custo. Diz sempre que todos devem ir ao banheiro antes de entrar na sala ou sair de casa. Por saberem dessa “fama”, os dois se assustam quando ela pára subitamente de escrever no quadro e vira-se, bruscamente, na direção deles:

 - Muito bonito, hein! Isso são horas? - O olhar daquela professora amedrontada todos os alunos. Parecia que seus olhos saíam quando ela estava mal humorada e isso era quase sempre!
- Professora, eu...
- Silêncio! - diz Valneide interrompendo o menino. - Não mandei você falar nada. Não existe nenhuma justificativa para que os senhores não estejam aqui no horário!

 Julie começa a pensar na professora como se fosse um elefante, com tromba e tudo. William começa a rir.

 - Do que você está rindo? - pergunta a professora. O menino fica desconcertado e baixa a cabeça.
- Eu? Eu não estou rindo não senhora...
- Saia da sala! Julie, você fica. William vá para a sala do Diretor. Não sou palhaça para você ficar rindo de mim. E quanto a Senhorita, sente-se e fique bem quieta na tua cadeira. Não admitirei nem um pio!
Agora, olhando para todos os estudantes ela continua:
Da próxima vez que algum de vocês chegarem nesse horário mandarei de volta para casa! Vocês me entenderam?
- Sim professora! - Respondem os alunos igualmente de cabeça baixa.

 William segue para a sala do diretor e, lá chegando, a secretária o recebe atenciosamente.
- Quem te mandou para cá?
- Dona Val me mandou vir aqui, mas eu juro que não tive culpa. - Ele olha para a moça com ar de piedade, essa por sua vez sorrir, pois já conhecia a má fama daquela professora.
- Pode ficar sentado aí. - Aponta para uma poltrona grande, bem em frente a sua mesa.
E lá ele fica até a hora do intervalo, quando o diretor o manda levantar e voltar para sala.

 Ao sair ele pensa “cadê você?” e uma voz responde:
- Logo atrás de você!
O menino dá um pequeno pulo para frente e olha para trás, é quando vê a prima achando a maior graça com a cara de espanto dele.
- Nossa! Você e tua mania de me assustar!
- Assustar? Se você me perguntou, eu tinha que responder. Caçoa a garota e curiosa pergunta como foi o tempo em que ele ficara na sala do “sargentão”? Era assim os estudantes chamavam o diretor.
- Ele estava de bom humor, até me deixou ler uma revista que estava na sala dele. Você acredita?
- Nossa! Isto sim é assustador! Não acredito mesmo!

 Os dois saem rindo e caminham em direção ao pátio. O menino segue para a lanchonete, a fim de comprar um sanduíche, enquanto a prima come as torradas que trouxe de casa. Quando retorna com seu lanche e vê a prima sentada e comendo ele senta ao lado dela e comenta, um pouco preocupado:

 - Agora sim você vai tomar seu “café da manhã”, não é? Não sei como você aguentou esperar tanto tempo!
- Nem me fale, estou devorando tudo. Eu estava morrendo de fome, mas não podia comer nada na sala. Sabe como é a Dona Val... Ela interrompe sua própria fala e depois continua: - William, tive uma idéia. Quer ir comigo até a janela da sala dos professores?
Ele coloca o lanche no colo, olha para ela e mexe uma mão na outra em um movimento circular, como se planejasse algo. - Vamos matar a Dona Val e esconder o corpo? Pronuncia em tom maquiavélico.
Ela balança a cabeça negativamente e, ao mesmo tempo, entorta a boca para um dos lados.
- Não seja bobo, menino! Você tem visto televisão demais!
- Então, o que faremos desta vez? Pergunta sorrindo.
Julie se levanta, puxa o primo por uma das mãos e sai caminhando com ele, que tenta não derrubar o sanduíche que comprou.
- Vamos, eu te conto no caminho!

 Enquanto andavam, os dois se entretiam em uma conversa silenciosa. A única coisa que se ouviam eram os risos que, vez por outra, soltavam. Aqueles dois eram assim, grudados desde pequenos. Agora com 10 anos viviam aprontando. Julie era mais destemida, William mais precavido, todavia ambos adoravam criar situações inusitadas e um sempre convidava o outro para suas artes. Havia, entre eles, um relacionamento visivelmente saudável e regado de sintonia, ao ponto de, algumas vezes, um ficar doente e o outro sentir. Os familiares brincavas dizendo que eles pareciam gêmeos que foram separados ao nascer!

 Contam que certa vez, em um sábado a noite, os pais de William saíram para uma festa entre amigos e levaram-no com eles, que na época estava com 4 anos de idade. A festa era em um espaço aberto, um ambiente campestre. No meio da madrugada William se perdeu e, com medo, se escondeu atrás de uma espécie de carroça, utilizada para ambientalizar o local. O que a pobre criança não fazia idéia é que ali havia uma enorme teia de uma espécie venenosa de aranha. Do outro lado da cidade Julie acordara chorando e chamando pelo primo. A mãe da menina corre para o quarto ao encontro da filha, ao pegá-la no colo a criança diz chorando “William, mamãe, William... a aranha vai pegar ele!”. A mãe, notando que a filha tivera um pesadelo, tenta acalmá-la, sem sucesso. Dona Laura sabia que a irmã saíra, então resolveu ligar para o local da festa e pedir para falar com a Lúcia, que atendeu a ligação já nervosa, com o sumiço do menino. Laura, então, contou o sonho e o local que a Julie vira nele. Imediatamente os pais chamaram algumas pessoas que trabalhavam e conheciam bem o ambiente, perguntaram onde seria e todos correram para encontrar o menino. Aquela história foi uma das primeiras dentre outras tantas que foram acontecendo.

 - Acho que é aqui, venha William. Olhe só! Diz a menina apontando para um montinho cheio de minhocas. Tome, pegue meu saquinho do lanche e encha.
- Eca! Você vai mesmo comer isso? Brinca.
- Eu não, você quem vai!

 Os dois riram, encheram o saco e andaram mais um pouco até a janela da sala dos professores, onde as educadoras estavam. Logo toca a sirene. A maioria das professoras saem e duas delas se dirigem ao banheiro, entre elas a Dona Val. Rapidamente as crianças entram na sala, abrem a bolsa, colocam as minhocas e saem correndo.

 - Vamos logo para a sala, rápido seu molenga!
Ele passa a frente dela e grita - Quem chegar por último é a mulher do padre!

 Os dois entram na sala de aula, suados, mas com aquela cara que só tem aqueles que aprontaram. A segunda aula do dia era da senhorita Rosa, uma professora doce e querida por toda a turma, ela demora um pouco para chega, mas logo entra sorrindo e cumprimentando:

 - Bom dia crianças!
- Bom dia professora Rosa! - Quando a senhorita rosa entrava na sala, eram sempre motivo de alegria.
- Crianças, hoje eu tenho uma surpresa para vocês. Na tarde de ontem, eu sai para um passeio com algumas amigas e passamos em um local delicioso, lembrei de vocês e resolvi comprar para toda a turma.
- Oba!
- Que legal!
- É de comer?
Diziam as crianças com entusiasmo.
- Hum, é de comer sim Anninha. - Conta a senhorita Rosa.
- Êeeeeeeeeeeee! (Gritam todos em uníssono).
Em seguida a professora pega a grande bolsa que levara naquele dia e ao abri-la, qual não foi a sua surpresa ao notar que estava cheia de terra e minhocas. Quando viram a cara de espanto da professora, as crianças correram para ver do que se tratava. Os dois primos, por sua vez, se entre-olham com a cara de “quem acabou de ser pego no flagra”, então olham para suas mãos, percebem que, na pressa de retornar a sala, esqueceram de lavá-las, rapidamente lançam os braços para trás e aproveitam o tumulto das outras crianças para saírem da sala de fininho...

 - Como nós, dois profissionais em travessuras, cometemos esse erro infantil? - Comenta William com a mão esquerda no queixo e um ar de adulto.
Julie mostra indignação com as mãos na cintura e balançando a cabeça negativamente - Não é possível, a Dona Val estava com uma bolsa igualzinha aquela, eu vi.
William ouve um barulho - Psiu! está vindo alguém aí.

 Imediatamente os dois correm para os banheiros, lavam as mãos e voltam correndo para a sala. Percebem que a professora, também, saíra, a fim de limpar a bolsa. Quando estão para sentar ouvem uma voz de criança a perguntar onde eles estavam. Era Juninho, o garoto mais chato da sala. Que, naquele momento, fazia papel de ajudante do dia da professora, mas se comportava como se fosse chefe dos coleguinhas.

 - Dona Rosa disse que eu tomaria conta da sala, enquanto ela estivesse fora. Vocês saíram e não me avisaram.
- “Fomos pegar mais minhocas, para colocar na tua boca”. Pensa William e em seguida Julie põe a mão na boca para rir baixinho.
O colega fica vermelho e um pouco bravo:
- Do que você está rindo? Quando a professora chegar eu vou dizer a ela!
- “Como ele falará se estará de boca cheia?”. Pensa William, imaginando o menino cheio de minhocas. Julie não se agüenta e solta uma gargalhada. Juninho corre para chamar a professora, mas ela já estava voltando e tomba com ele na porta da sala.
- Menino, o que houve? Porque essa correria? Diz a professora segurando-o, suavemente, pelos braços. Juninho aponta para os colegas.
- Professora! Estes dois aqui saíram e não me avisaram onde foram!
Quando a senhorita Rosa olhou, logo notou que se tratava dos primos.
- Ah! A dupla dinâmica! Onde vocês estavam? - Pergunta a professora.
- No banheiro, prozinha. - Responde William.
- Ouviu Junior? Eles foram ao banheiro. O que tem demais nisso? Enquanto fala, ela entra na sala levando consigo o aluno embirrado que ao notar a falta de apoio da educadora fica cabisbaixo.
- Mas... A Senhora não mandou que eu tomasse conta da sala?
- Sim, mas eu pedi para você tomar conta para evitar confusão, somente. Não precisa agir assim com seus colegas ou eles vão acabar ficando zangados com você. Agora volte para sua carteira, obrigada pela ajuda!
- Tudo bem professora, desculpe - responde Juninho já se dirigindo a sua mesinha.
- Vocês dois, também, vamos! Todos sentados, por favor!

 Antes da professora fechar a boca, ela ouve um barulho, vindo de dentro da sala, ao olhar ela vê Julie, no chão, se debatendo.

 - Socorro! Alguém venha aqui na sala! - Grita ela enquanto corre em direção a menina. William está em estado de choque, olhando para a prima, sem reação. Logo um segurança entra na sala e carrega a garota, levando-a em direção a sala de descanso dos professores. O diretor é avisado e imediatamente liga para o hospital, solicitando uma ambulância e em seguida telefona para os pais da criança informando o ocorrido.

 Na sala as crianças estão aflitas, algumas choram sem entender o que aconteceu com a coleguinha. William não saiu do lado da prima um único momento, estava nervoso, mas tentava mostrar maturidade e continha todo o medo e a vontade de chorar. Logo chegaram os paramédicos e fizeram os primeiros atendimentos, verificando os sinais vitais e colocando uma máscara de oxigênio, mas a menina permanecia inconsciente e pálida, transferiram-na para a ambulância e levaram-na ao hospital, acompanhada da professora. Poucos minutos depois, chegam à escola os pais da menina, eles são recebidos pelo diretor que explica em poucas palavras o ocorrido, informando o nome do hospital para o qual a filha deles fora encaminhada.

 ***

 No hospital, os pais acompanhados do sobrinho, aguardavam aflitos alguma notícia, quase no final da manhã a menina recuperou os sentidos, mas não recebeu alta, os médicos precisavam de mais exames para entender o que aconteceu. Saíram do estabelecimento no começo da noite, a menina já estava corada e morrendo de fome, pediu aos pais que a levasse com o primo para  lancharem, então passaram no shopping e para realizarem uma leve refeição.

Enquanto lanchavam, os quatro conversavam em tom de alegria. As crianças pareciam ter esquecido o ocorrido e brincavam de roubar o lanche uma da outra. De repente, em meio a uma mordida Julie para e olha para os pais, então pergunta a eles o que lhe acontecera.
- Não sabemos ainda, filha. Os médicos disseram se tratar de uma indisposição, talvez ocasionada por algo que você tenha comido. - Enquanto a senhora Laura respondia, disfarçadamente, ela coloca as mãos no colo do marido, que sutilmente sobrepõe a sua mão na da esposa e pressiona-a suavemente, como se tentasse dar força para ela conseguir falar.
- Ou não tenha comido. - William solta sem querer a frase e balança negativamente a cabeça, enquanto levava um pedaço do lanche a boca.
Laura olha para o sobrinho, um pouco espantada com a colocação do menino e questiona repetindo a frase - Como assim “não tenha comigo”?
- “Linguarudo” Pensa Julie, entreolhando para o primo, com cara de brava.
Com ar de desdém e meio caricaturado, ele olha para a prima e responde: - “Não sou nada, tenho culpa se me preocupo com você?”
Ela por sua vez faz um bico ainda maior e retruca: - “Lógico que o que me aconteceu não tem nada haver com o fato de eu não ter tomado café”.
Então a discussão se altera e os dois parecem bravos:
- “Quem te garante?”
- “Eu garanto”
- “Virou médica, agora?”
- “Vou virar teu suco já já!”
- “Experimenta!”
Quem estava de fora só notava a mudança de fisionomia de ambos, com direito a troca de olhares, caras e bocas.
Já cansado de aguardar, o senhor Jader interrompe a cena e, um pouco bravo pelo silêncio na mesa, fala com um tom de voz mais seco do que o seu habitual: - Vocês vão responder ou continuarão se olhando com cara de briga e fazendo caretas?
Baixando a cabeça e o olhar e falando baixinho Julie finalmente explica - Não é nada, papai, eu só não tive tempo de tomar meu café da manhã.
- Só? Você acha pouco? Muito bonito isto mocinha - diz a mãe. - Pensei ter ouvido de ti, antes de sair de casa, que comeria no caminho para a escola, então eu embalei a contragosto algumas torradas e coloquei uma caixinha com suco para você levar. Agora, vendo que você não cumpriu o que disse, eu não permitirei mais que você saia de casa, antes de tomar teu café da manhã ou antes de qualquer outra refeição!
Rapidamente a garota levanta o olhar em direção a mãe e com ar de quem pede clemência tenta implorar que a mesma reveja o que acabou de dizer, mas ao começar a falar é interrompida.
- Não tem mais! - Conclui Laura com toda tranqüilidade do mundo, ao mesmo tempo em que levanta a sobrancelha e olha para a filha.
- Tua mãe está certa, filha, não sabemos o que você teve, mas ficar sem comer pode ter te deixado mais fraca.
- “Eu te disse! Eu te disse! Eu te...” Pensa William rindo.
- Para de falar besteira, William! - interrompe Julie.
- Mas teu primo nem abriu a boca, filha. Diz dona Laura.
- Não disse, mas pensou.
- Você agora lê pensamentos? - responde a mãe rindo.
- Deixa para lá, mamãe, melhor eu terminar meu lanche... A menina bebe um gole do suco e olha para o primo, meio contrariada, enquanto ele se diverte por ela ter se “entregado”, sem querer.
O pai de Julie, o senhor Jader, era um homem de poucas palavras, muitas idéias e ações. Um homem alto, de pele clara e olhos vivos, estava sempre atento a tudo e a todos. Ele gostava muito de pesquisar sobre fatos incomuns e há anos observava o comportamento dos primos e a sintonia entre eles. Ele sabia que o que acontecia com eles não era uma mera coincidência ou bobagem infantil, porém tratava-se de duas crianças, por isso ele não ousava falar nada, não desejava influenciar em um processo que, se tivesse que se desenvolver, teria sua maturação naturalmente.
Em um gesto de carinho, dona Laura passa a mão no cabelo da filha e diz:
- Bem, terminem logo! Já está tarde e vocês precisam dormir. O dia foi longo e cansativo, além disso, vocês estão no final do ano letivo, muito em breve estarão de férias, por isso precisam manter a rotina e chegar cedo amanhã na escola!
- Ah mamãe, queria ficar mais um pouco!
- Outro dia nós voltaremos com mais calma, filha. Hoje foi um dia muito estressante para todos nós, principalmente para você mocinha! Além do mais, os médicos disseram para você repousar!
- Eles me fizeram passar o dia todo deitada e ainda querem que eu descanse mais?
Todos deram risada e o diálogo prosseguiu até o final do lanche. Enquanto William e Julie brincavam distraidamente de “roubar” o lanche do outro, os pais da menina mantinham um semblante tranqüilo, mas que deixava escapar certa preocupação. Quando todos estavam satisfeitos, levantaram e caminharam pelo shopping, em direção ao estacionamento. Os dois primos andavam um pouco mais a frente, enquanto a senhora Laura e o senhor Jader conversavam, mais atrás.
- Jader, meu bem, amanhã cedo irei ao hospital. Precisamos entender o que houve com nossa filha.
- Bobagem, minha querida, coisa de criança. Você não ouviu o que eles disseram? A Julie não se alimentou bem, certamente brincaram muito, sem se importarem com o sol, durante o intervalo. Junte as duas questões e em seguida um leve mal estar.
- Pode ser, mas meu sexto sentido materno diz que há algo mais nisso tudo. Meu coração ainda está apertado e eu um pouco apreensiva.
Caminhando, o marido abraçou a esposa e disse:
- Você é uma mãe zelosa. É normal que se sinta desta maneira. Se você quiser, eu mesmo passarei amanhã no hospital e pego o resultado dos exames. Fique tranqüila, nossa filha é uma menina saudável e muito ativa. Eu acredito que está tudo bem com ela, acredite você também!
Dona Laura sorriu e beijou carinhosamente o marido, em seguida olhou para frente, onde estavam as crianças que brincavam, riam muito e olhavam as lojas por onde passavam. Por um instante William para e olha para a prima:
- Está tudo bem contigo? Pergunta o menino um pouco assustado.
- Claro seu bobo! Por que não estaria?
Logo em seguida Julie segura firme a mão do primo:
- Ai! Gritou William. - O que você está fazen... Mal concluiu a frase e percebeu que a menina parecia cair lentamente sobre ele. Os dois tombaram no chão e ela começou a colocar para fora todo o lanche que acabara de ingerir. Os pais, vendo aquela cena, correm em direção aos dois, seu Jader segura a cabeça da filha, inclinando-a de uma forma que o vômito não sufocasse sua respiração. Assustada, dona Laura, chama um segurança do shopping que rapidamente aciona o serviço médico do estabelecimento. Alguns minutos depois eles estão, novamente, dirigindo-se ao hospital onde mãe e filha passam o resto da noite e madrugada.
William foi deixado em casa, pelo tio, mas não conseguiu dormir a noite inteira. A certa hora da madrugada, o menino pensava na prima, quando teve a sensação da presença dela alí mesmo no seu quarto.
- Prima, você está aqui? Você está melhor?
- Estou me sentindo um pouco fraca e entediada, aqui neste quarto branco, sem nada para fazer.
- Ah, você ainda está no hospital.
- Sim, mamãe pegou no sono agora a pouco e você o que está fazendo?
- Tentando dormir.
- Não dorme agora não, vamos conversar um pouco, eu estive pensando e se eu morrer agora? Terei morrido em vão, nem mesmo contei meus planos para ninguém?
- Planos? Que planos? O que você quer aprontar agora?
- Eu nunca apronto, você é quem não entende meus momentos de genialidade! Diz a menina sorrindo.
- Claro! Claro! Esqueci que você e o “Cebolinha” são as mesmas pessoas! Brinca William, fazendo alusão a história em quadrinhos que a prima adorava ler.
E assim eles permaneceram até quase de manhãzinha, quando os dois, ao mesmo tempo, pegaram no sono.

 No dia seguinte, um belo sol brilhava no horizonte. Apesar de cansado, William despertou cedo e foi para a aula, não conseguiu se concentrar, pois só pensava no tempo que não passava e ele queria sair logo da escola para visitar a prima, no hospital. Durante o intervalo, ele não foi brincar com as outras crianças. Terminou por adormecer e durante o sono, viu-se em um corredor branco, não sabia direito onde estava, até que notou uma porta, andou alguns passos até ela e abriu-a. Ao empurrar se deu conta de que estava diante do quarto do hospital onde Julie se encontrava. A menina estava deita de lado e ao sentir a presença do primo voltou-se para ele.

 - Ainda bem que você chegou! Eu já estava exausta aqui, sem fazer nada.
- A aula está demorando para passar. A professora perguntou por você e eu disse que você não quer mais estudar, disse que você quer viver pedindo esmolas pelas ruas!
- Você disse isso mesmo?
- Claro, não foi o que você disse esta noite?
- Eu disse isso? Larga a mão de ser mentiroso menino!
- Ué, será que eu entendi errado?
- William!!
- É brincadeira, sua boba! Eu disse a professora que você fugiu!
- William...
Os dois começaram a rir.
- Minha mãe disse que sairei antes do almoço. - Diz a menina.
- Então, quando sair da escola, eu irei para a tua casa ver se você melhorou.
- Você está vendo que eu estou melhor, o que você quer é almoçar de graça!
- Vou comer a tua sobremesa!
- Não vai nada!
- Vou sim senhora...
- Vai o que William? Pergunta a professora sorrindo.
O menino olha para os lados e nota que toda a turma já está de volta a sala e olhando fixamente para ele. À sua frente a professora Rosa com seu carinhoso olhar.
- William, querido, você estava sonhando, dormiu em plena sala de aula.
- Desculpa professora, eu estava cansado, ontem tive um dia cheio.
- Hum, falando parecendo um rapazinho. Você está se sentindo bem?
- Estou sim professora, obrigado.
- Bem, então voltemos à aula!
O restante da manhã transcorreu normalmente e quando a aula acabou dona Lúcia já aguardava o filho na saída da escola. Ela sabia que o menino queria ficar ao lado da prima o maior tempo possível, por isso não hesitou em pegá-lo para visitar a sua sobrinha no hospital.

 - Mamãe! A Julie já está em casa.
- Não sei filho, eu esperei você sair para ligar para tua tia Laura.
- Não mamãe, eu não perguntei, eu estou te dizendo que ela já saiu do hospital.
- Ah é mesmo? E quem te contou?
- Eu falei com ela, na hora do intervalo. Estive lá no hospital.
- Você quer dizer que ligou para ela?
Neste momento o telefone da senhora Louren começa a tocar.
- Olá minha irmã! Eu já estava para te ligar. Acabei de pegar William na escola e vamos ver vocês.
- Laura, já estamos em casa, a Julie parece que engoliu um apito e não para de falar. Ela disse que William viria almoçar conosco e que era para esconder a sobremesa dele! Ela disse que o primo foi visitá-la no hospital, no intervalo da aula e que ele se despediu dizendo que depois do almoço comeria a sobremesa dela! É mole? Quem agüenta com estes dois minha irmã? Conclui com muita risada a senhora Laura.
Do outro lado da linha silêncio, depois de alguns segundos, Lúcia responde.
- Irmã, William acabou de me contar que foi visitar a prima no hospital e confirmou que vocês não estavam mais lá.
- Bem, Lúcia, não sei o que estes dois aprontaram, nem de onde tiram tanta imaginação, acredito que de tanto andarem juntos já devem ter aprendido a criar as mesmas histórias. Só sei que graças a Deus a minha filha está bem e estamos em casa. Venham almoçar conosco, esperaremos por vocês.
- Certo, estamos a caminho. Lúcia desliga o telefone e segue para casa da sua irmã, pensativa.


 IV

 - Mãe, tem certeza que esta roupa está legal? - Questiona William, olhando para o espelho da penteadeira do quarto de sua mãe.
- Claro filho, você está um brotão! - Responde a Senhora Louren, arrumando os cabelos do filho. Tua prima ficará feliz em te ver, antes de partir. O menino baixa a cabeça e levanta os olhos com uma certa tristeza.
- Ela precisa mesmo viajar, mamãe?
- Infelizmente sim, querido. Nós já te explicamos isso algumas vezes.
Ele para por alguns instantes e, ao falar, gesticula balançando as duas mãos com as palmas para cima:
- Mas porque os médicos não cuidam dela aqui mesmo, no Brasil?
A mãe senta-se, põe o menino no colo e abraça-o carinhosamente.
- William, nós já conversamos sobre isso e você entendeu, porque insiste?
Ele olha fixamente para a senhora Louren:
- Entender é uma coisa mamãe, aceitar é outra bem diferente!

 A senhora Lúcia surpreende-se com a resposta do filho, em seguida seus olhos se enchem de lágrimas, mas ela sabe que precisa se conter para não entristecer, ainda mais, o menino. Em seguida, ouve-se uma voz de homem, vindo do andar inferior da residência:

 - Vocês estão prontos? - Pergunta o senhor Louren, que estava próximo a subida da escada.
Lúcia tira o filho do colo, levanta-se e avisa que já estavam praticamente prontos e que em pouquíssimo tempo desceriam. O marido então aproveita para ir até a garagem e colocar o carro para fora da casa.
- Tudo bem, espero vocês dentro do carro.

 O dia amanheceu triste. O sol estava escondido, por entre as nuvens. Aquela manhã de sábado era de despedida. Depois de algumas semanas, entre idas e vindas do hospital, os médicos não conseguiram diagnosticar o problema de saúde da menina Julie. Após muitos exames, havia suspeita de doença auto-imune muito rara, cujo tratamento era desconhecido no país. Por isso a indicação de que a menina fosse transferida para um hospital na Alemanha, onde dois casos da mesma doença foram confirmados e um deles tratado com sucesso.

 A família toda se reuniria no aeroporto. Os que haviam chegado primeiro conversavam, enquanto aguardavam os demais. Os semblantes demonstravam um misto de tristeza e preocupação. Julie, com os cabelos presos, aguardava a chegada do primo, sentada em sua mala rosada. Mesmo abatida, a menina mantinha um leve sorriso e admirava o movimento das pessoas no saguão.
Ao notar a chegada do primo, a menina fica em pé e aguarda que ele se aproxime.
Após saudarem os tios, ambos se cumprimentam com beijos e abraços.

 - Está atrasado! - Ela estava com um belo vestido azul claro rodeado de pequenas flores brancas por todo o comprimento, levanta-se e põe as mãos na cintura, enquanto sacode, rapidamente, o pé direito.
- Também estou muito feliz em te ver! Responde o menino, ironicamente e tentando abraçá-la. Mas ela cruza os braços e quer saber por que ele demorou tanto para chegar!
- Porque chegou agora?
William põe as mãos nos bolsos e levanta os dois ombros ao mesmo tempo.
- Não importa, o que vale é que estou aqui. Concorda?
Ela descruza os braços, suspira profundamente e ao falar lança um olhar lateral triste em direção ao chão:
- Se chegasse mais cedo teríamos aproveitado mais o pouco tempo que nos resta.
William entorta um pouco a boca para o lado direito e balança a cabeça de um lado ao outro. Lanças os olhos, também, para os lados, só que em direção ao teto e sacode a mão esquerda com a mão voltada para cima.
- Nossa, falando assim parece que nunca mais nos veremos.
- Quem sabe? Dramatiza a menina com ar meio sapeca.
- Eu sei, só temos 10 anos e uma vida longa pela frente.
- Ah! Agora você assume que só tem 10 anos de idade? - Diz Julie rindo e fazendo cócegas nele.

 William dá um passo para trás, levando uma das mãos ao bolso, retira de lá um pequeno embrulho e entrega à prima.

 - Pegue, é para você.
- O que é isso? Pergunta ao pegar o presente.
- Pode abrir, garanto que não morde! - Sei que você sempre quis um, então resolvi te dar o meu. Fui eu mesmo quem embalei!
Vê-se logo que foi você mesmo! Está a tua cara, todo amassado! - Ironiza.
A menina abre o pequeno embrulho e fica surpresa. Mas... É o teu preferido. - Diz ela.
- Eu já estou bem grandinho, não preciso mais dele. Acho que não vou me arrepender em te dar.
Ela lança os braços para trás e esconde a caixinha - Pois não me peça de volta! Agora é meu!

 William faz menção de tomar o objeto, o que fez com que Julie corresse e ele fosse atrás dela.

 - Não sumam das nossas vistas. - Pedem as duas mães, ao mesmo tempo.
A senhora Laura segura, com suas duas mãos, a mão esquerda da senhora Lúcia, esta por sua vez, põe a mão direita por cima de uma das mãos da irmã.
- Minha amada irmã, estou um pouco receosa com essa viagem. Não sabemos quanto tempo levará, até que tudo se resolva. Não gostaria de me afastar de você e ainda por cima ter que ficar longe de mamãe e papai.
- O importante, Laura, é confiar e acreditar que tudo acabará bem. Nós estaremos torcendo por vocês e ficaremos na expectativa para que vosso o retorno seja breve. Quanto a mamãe e papai, eu cuidarei deles até você voltar!
- Obrigada! Preocupo-me, também, com a Julie e o William. Será a primeira vez, em dez anos, que os dois se separarão e por um período que não sabemos quão longo será, então fico aflita, sem saber como reagirão com tamanha distância!
- É, eu também me preocupo com isso, os dois são muito apegados, parece que são dois irmãos que foram separados ao nascer, mas logo se reencontraram, certamente sofrerão, mas no final tudo dá certo, não é assim que você sempre me diz?
- Verdade. No final tudo acaba bem.
As duas irmãs se abraçam calorosamente.

 Minutos depois o senhor Jader, a senhora Laura e sua filha, encontram-se embarcando para a Europa. Muitas lágrimas na despedida, mas no coração de todos havia a esperança de em breve se reencontrarem.


 V

 Julie e William permaneciam parados olhando aquele imenso monumento que estava bem diante dos seus olhos. Ela ainda apontando para a estrutura de concreto e aço. Aquele enorme shopping center, que estava no lugar onde deveria ficar a casa dos seus pais, era uma visão absolutamente perturbadora. William se dá conta que só podia ser engano. Eles, certamente, entraram em outra rua! O jovem baixa o braço da prima e sorri.
-Julie, sua cabecinha, você pegou o caminho errado! A não ser que meus tios estejam morando dentro do shopping e você não me contou!
A garota sacode a cabeça, rapidamente, de um lado ao outro, como se tentasse despertar de um sonho.
- Não, William, eu não me confundi. O caminho é esse mesmo! Eu já estive aqui centenas de vezes e a casa fica ali! Quer dizer, ficava. Ou não? - Ela olha para baixo e tenta raciocinar. - Será que eu errei o caminho? - Pergunta-se a garota.
-Eu acho que você errou, vamos voltar para o metrô e refazer nossos passos....
- Não - Interrompe Julie. - Eu me lembro daquele ponto de ônibus e da casa do vizinho da frente... É aqui mesmo, olhe lá ela! Novamente espantada diz: - Ué, mas ela não era azul... Porque ele pintou a casa de azul? Não importa, nós estamos no lugar certo sim, só não me pergunte o que aquele shopping está fazendo ali porque eu não sei!!!
- Tá bom! Tá bom! - diz William levantando as mãos indicando para ela se acalmar. - Já sei, vamos ligar para teus pais e pedir que venham buscar a gente no metro. Assim fica mais fácil de chegarmos a casa dos meus tios. Você sempre foi uma péssima guia! William dá risada e pega o aparelho celular para discar para o tio, mas o display exibe uma mensagem de erro de registro e um X no lugar onde deveria indicar o nível de sinal da antena. Enquanto isso, Julie continua atônita, parada no meio da caçalda.
- É, - diz ele - parece que não é nosso dia de sorte. Meu celular resolveu parar de funcionar, ou então estamos sem sinal.
- Pior do que a casa deles dar lugar a isto aqui, bem na nossa frente?
- Já falei, certamente, nós entramos na rua errada. Poderíamos refazer o caminho, mas você prefere ficar aqui, em pé. Ao menos pega o teu celular e liga para eles.
Sem tirar os olhos do gigante edifício, ela põe a mão na bolsa e retira o aparelho. - Pegue, ligue você. Diz, entregando o telefone ao primo.

 William fica frustrado ao perceber que o display do celular dela apresenta a mesma mensagem de erro que o dele e também está inoperante. Então, ele sacode o aparelho, como se tentasse fazer pegar no tranco e ou achar algum sinal.

 Após alguns minutos, que mais pareceram horas, os dois começam a se mover na direção do prédio. Julie parecia querer verificar se aquilo é real. William pensava uma maneira de mostrar para ela que eles estavam no lugar errado.

 Eles param diante da entrada principal, toda feita de vidro. O sensor da porta identifica a presença dos dois e aciona a abertura da mesma, o que faz Julie dar um pequeno salto para trás com o susto. Os dois entram no shopping e ela percebem que o edifício é bem real. De repente ela sai do prédio e olha tudo que está em volta. Caminha até o ponto de ônibus e senta-se. Uma folha de jornal paira sobre os seus pés, mas ela está preocupada demais para dar importância aquilo.

 - Nossa, uma folha de jornal com a página colorida. - William se abaixa pensando em pegá-la, aquilo era algo inusitado para ele. Os jornais locais não possuíam folhas coloridas, certamente aquele impresso era de outro Estado. Porém, ao fazer menção de segurar, o vento leva a página para o meio da rua. Com os olhos, ele acompanha o movimento da página ao vento e quando se levanta,  Julie segura sua mão e comenta:
- William, eu não entendo. Olhe só para tudo aqui. O outro lado da rua está tudo exatamente igual, exceto pelo mau gosto do vizinho que pintou a casa de azul escuro. Fora isto, poucos detalhes mudaram. Agora deste lado que nos encontramos, deveria haver ao menos três imóveis residenciais. Eram casas grandes, com imensos quintais. Como é possível tudo se desfazer da noite para o dia? E mais, como é possível construir um monstro, deste tamanho, - fala apontando para o shopping - em uma semana, ou menos! Sinceramente, eu não entendo.
- Eu entendo.
Julie olha para ele com os dois olhos bem abertos.
- Verdade?
- Sim, veja bem. Você passou mal ontem. Agora a pouco sentiu algo estranho, ali mesmo na esquina. Certamente você não está bem. Venha, voltemos para tua casa, quem sabe depois de dormir um pouco, você se sinta melhor, então ligará para tua mãe e dará muita risada contando o ocorrido.
Ela olha, seriamente, para o primo.
- William, eu estou bem. Nenhuma dessas bobagens seria capaz de me causar tamanha loucura. Mas tudo bem, você disse algo certo. Vamos para casa, lá eu ligo para mamãe e em outro dia voltamos aqui ou, quem sabe, acordamos deste pesadelo!
- Venha, eu levo você de macaquinho. - Diz ele tentando carregá-la pelas pernas.
- Nem se atreva! Solte-me!
Depois daquela brincadeira, a garota relaxa um pouquinho, mas logo em seguida volta a pensar no ocorrido. Eles fazem o percurso ao contrário e retornam a estação de metrô para voltar para casa.

 ***

 No guichê do metrô, a atendente entrega um único bilhete e algumas moedas de troco.
- Desculpe-me senhorita, eu pedi duas passagens, você só me entregou uma.
- Lamento, senhor, mas o valor que o senhor me deu só cobre o bilhete único. Para duas passagens, ainda, faltam algumas moedas. Se desejar, senhor pode verificar o valor no visor - diz a atendente apontando para a tela acima do balcão.
- Como assim? Eu te dei o valor certo correspondente a duas passagens! - Protesta William olhando na direção apontada. - Como é possível? O preço de volta é quase o dobro da vinda. - Ele olha espantado para Julie aguardando uma reação dela, mas ela não esboça um único sentimento, somente levanta os dois ombros, enquanto suspira, demonstrando estar tanto desinteressada quanto sem noção do que lhe acontece ao redor. Neste momento William só tem um único pensamento: tirá-la dali imediatamente, independente de todo o resto. Ele completa o pagamento, recebe o outro bilhete e os dois embarcam de volta.

 A viagem de retorno pareceu uma eternidade. O silêncio reinou entre os dois quase o caminho inteiro, Julie de vez em quando balançava a cabeça negativamente, como em um diálogo consigo mesma, mas sem conseguir um acordo interno. Depois de um certo tempo, começou a demonstrar cansaço, chegou a encostar sua cabeça no ombro do amigo, onde tirou um leve cochilo e acordou um pouco menos agitada. William, por sua vez, parecia tranqüilo. Ele só queria chegar em casa e tomar um banho, depois disso ligaria ou retornaria a casa dela para conversarem mais sobre o assunto. Certamente, até lá, ela já teria falado com os seus tios e, quem sabe, marcado uma ocasião melhor para aparecerem por lá.
De repente eles olham e começam a rir sem saber por quê.
Carinhosamente, William olha para a prima e narra: - Recordei, agora, de mamãe falando que nós aprontávamos muito. Sempre que nossa família se reunia tinha muitas histórias a nosso respeito para contar. Diziam uma frase engraçada, lembra?
- SEPARADOS AO NASCER! - Disseram os dois espontâneamente e ao mesmo tempo, fato que gerou uma alegre gargalhada em ambos.
- Eu, também, lembrava agora mesmo dessas histórias. E você se recorda como tramávamos a maioria das nossas artimanhas? Era surpreendente como ninguém percebia... Lembra disso, também? Pergunta a garota dando alguns tapinhas na perna do primo que logo se empolga:
- Lembro-me! Parecia que eu lia seus pensamentos e você os meus, mas devia ser impressão, coisa de criança. - Conclui mexendo a cabeça de maneira rápida e sorrindo.

 Julie levanta as duas sombrancelhas, com um largo sorriso no rosto, parecia que voltara a ser criança. Interrompe-o, por alguns instantes, dizendo se recordar que sentia o que acontecia a ele... - Ela olha para William com ar de sapeca e nota-o com olhar perdido como se tentasse puxar da mente novas lembranças. Ele contunua:

 - Pois é. Estou me recordando de algumas coisas, agora. Por bastante tempo essas lembranças ficaram adormecidas, mas desde que isso começou as imagens têm se formado de forma mais clara nas minhas memórias. As vezes, parece um vago filme, outras são mais vivas, como se estivessem acontecendo naquele instante... Não teve uma vez que a gente colocou minhoca na bolsa da professora? - Diz sorrindo.
- Sim! Eu me lembro disso! Você foi lá em casa me buscar porque eu tinha acordado tarde. Não foi? - Ele balança a cabeça afirmativamente. - Esse, também, foi o dia eu fiquei doente... - Como se a lembrança a entristecesse, ela baixa a cabeça. Notando isso o rapaz segura a mão da prima, leva-a até seu colo e permanece com sua mãe sobreposta a dela, dando um leve aperto. Logo ela volta a sorri e continua - Recordo-me, também, do dia que você caiu da bicicleta, eu estava no meu quarto, minha mãe ensinava-me a lição quando... - Ao ouvir a narração, William começa a ver as imagens do acontecimento se formando nitidamente em sua frente...

 É final de tarde de um dia qualquer. Julie está em casa com sua mãe fazendo o dever de casa. William está na casa dele e acabou de fazer suas tarefas escolares de modo que vai até a garagem pegar sua bicicleta para ir à casa de sua prima. Ele abre a porta da garagem, empurra a bicicleta para fora e vira-se para fechar o portão. O portão de sua casa é daqueles que sobem e descem, ele muitas vezes se divertiu apenas apertando o controle remoto para vê-lo em movimento, até o pai tomar-lhe o controle e dar-lhe uma bronca. Naquele dia, ele queria passear bastante então logo volta para onde deixou a bicicleta, monta-a e segue na direção contrária ao trânsito, pois ele considerava que desta forma podia ver se tinha algum carro vindo perigosamente, fato que não aconteceria se estivesse seguindo o sentido do trânsito, pois estaria de costas para os veículos, mas também seguia o conselho do seu pai e pedalava bem próximo ao paralelepípedo, evitando o meio da pista, como alguns crianças gostavam de brincar perigosamente. A casa de Julie dista cerca de 5 quarteirões de sua casa e ele imagina que em cerca de 10 minutos deve chegar lá.
Não muito longe dalí, uma mulher chega em casa e encontra seu marido com uma garrafa de Wisky sobre a mesa.
- Bebendo de novo, Johnny? Você não passa mais um dia sem colocar alcóol na boca?
- Ah. Não vem encher meu saco agora, certo? Não paguei a porcaria do seu cartão de crédito? Deixa eu beber essa merda em paz e cala a boca.
- Como é? Você está pensando o que? Você acha que eu sou algum tipo de prostituta? Pagou o meu cartão de crédito e por isso pode fazer o que quiser? Você tem responsabilidades! Vai querer que seu filho cresça e vire um vagabundo igual a você? - O homem levanta-se enfurecido e acerta o rosto da mulher com um tapa violento, fazendo-a cair sobre a escrivaninha ao lado do sofá, derrubando, também, o telefone no chão. Uma criança, que estava na porta do quarto ouvindo tudo, entra, como se tentasse se esconder e começa a chorar. O homem pega sua chave, abre a porta e sai em direção a um carro estacionado do lado de fora da casa. Entra no veículo, enfia a chave na ignição e sai sem nenhum destino em mente. Ao virar a direita na primeira esquina dá de frente com um menino montado em uma bicicleta no canto da curva, ele toma um susto e tenta desviar. O menino pula da bicicleta, em direção a calçada, batendo o joelho fortemente no chão, o carro derrapa e bate a parte traseira num poste. Em sua casa, Julie dá um grito de dor, levando a mão ao joelho esquerdo.
- O que foi, minha filha? - Pergunta a mãe para a menina um tanto quanto assustada com aquele grito repentino.
- Não sei, mãe, mas senti uma dor muito forte no joelho. Diz a garota encostando a cabeça onde antes estava a mão e segurando a perna, fortemente, com os dois braços.
- Deixe-me ver - A mãe levanta, aproxima-se e olha o joelho da filha, mas não encontra nada. Nenhum sinal de picada de inseto, muito menos ematoma. - Estranho, não tem nada aqui, como foi a dor que você sentiu?
Apesar de sentir um certo incômodo, Julie solta a perna dizendo a mãe que está bem e que a dor passou.

 - E cinco minutos depois entra você em lá casa empurrando a bicicleta e mancando, com a perna arranhada. Você estava todo sujo! - Diz Julie rindo, terminando de contar a história, William atento e ainda com olhar perdido completa:
- Titia ficou me perguntando como foi que aconteceu tudo e falou umas mil vezes que eu tinha que tomar cuidado e olhar por onde eu andava, ela ligou para mamãe, que foi me buscar. Enquanto as duas conversavam na cozinha, você me puxou até o teu quarto e contou o que sentiu. É incrível, como é que a gente pode se lembrar disso depois de tanto tempo?
- Não sei, mas graças a Deus nossa memória, apesar de ser volátil, possui uma bateria que dura “para caramba”! - diz Julie rindo.
- Na verdade nosso cérebro armazena as informações valendo-se de associações. Com certeza essas coisas que estão nos acontecendo têm relação com o jeito que éramos quando criança. Quando conversarmos com teu pai, certamente, será de grande valia. Algo me diz que meu tio nos ajudará a esclarecer todas as nossas dúvidas.

 ***

 Finalmente eles chegam ao destino. Descem na estação de metrô mais próxima a casa da Julie, a mesma que ele embarcaram, e caminham de volta ao lar.

 - Sempre achei que o caminho de volta é mais longo, deve ser devido ao cansaço ou, neste caso, desânimo. Apesar disto, eu gosto de caminhar. - Enquanto andavam, a garota olhava para o todos os lugares. Como se estivesse alí pela primeira vez. - Sabe, penso como essas coisas são engraçadas. Ás vezes nós passamos no mesmo lugar diversas vezes e não notamos algo ou encontramos um detalhe que não vimos anteriormente. Você já observou isso? Sei que a maioria das pessoas, na verdade, não prestam atenção ao detalhes do dia a dia, mas eu sempre ando olhando tudo e, mesmo assim, sempre me surpreendo com algo que parecia antes não estar lá.

 Sem muito interesse William fala que na certa é porque o que ela viu naquele momento, certamente, não estava alí antes. - Simples, não é? - Conclui.
- Nossa, você é ótimo, sempre seco quando se trata de delicadeza. - Diz empurrando de leve a  cabeça de William para a frente. Ele sorri. - Alí mesmo, debaixo daquela árvore, eu não notei antes que havia aqueles banquinhos. Se bem que neste caso, é o tipo de coisa que podem ter enfeitado hoje mesmo, enquanto nós estávamos fora, mas olhe aqui - Aponta para uma casa amarela de dois andares, eu já passei por aqui mil vezes e nunca tinha visto aquela janelinha alí, na parede lateral. Engraçado, não é?

 William torna a discordar, desta vez alega que a prima é muito distraída, então era de se esperar que ela não notasse detalhes como aquele. Ela olha um pouco brava e fica calada por um tempo, depois, como toda mulher, não aguenta e volta a tagarelar:

 - Ás vezes esqueço como você cresceu e ficou chato. Nem posso dizer que é de tanto estudar, porque eu, também, gosto muito de ler e de estudar, no entanto, não fico menosprezando as observações alheias. Sabia que às vezes você é um grosso sisudo? Ah! Que saco você! Pois eu tenho certeza de que aquela janela não estava alí, ontem. Certeza!

 O rapaz entorta um pouco a boca, tentando não rir. Desde pequeno, ele adorava ver a prima brava daquele jeito. Quando ela se alterava, ele achava que ficava mais linda do que já era, mas ele só estimulava o atrito, porque sabia que bastava um pouco de provocação para ela ficar daquele jeito.

 - Está bem, está bem! Você deve estar certa. Com certeza abriram um buraco, colocaram aquela janelinha, pintaram a parede e sei lá mais o que hoje. Afinal, não vejo nada demais fazer isso tudo em uma única manhã. Muito mais difícil seria você, senhora cabecinha de borboleta, não ter notado. - Ele sabia que aquelas palavras seria a alfinetada que faltava, então respirou fundo, aguardando a grande explosão, mas para seu espanto ela nada falou. - O que foi? Não vai dizer nada? - Pergunta ele ainda com ar de provocação, foi quando notou que ela estava parada.

 - William, eles não conseguiriam fazer tudo isso em uma única manhã. - Pronuncia com jeito de quem perdeu a batalha.
- É eu sei, mas você vai ficar aí parada com essa cara de taxo por causa de uma janela tão insignificante? Estas coisas acontecem. Nós andamos sempre tão atarefados, tão estressados que mal damos conta das mudanças que acontecem conosco, quanto mais com a casa do vizinho. Relaxe, vamos andando.
- Mas eu não sou assim, você sabe que gosto de ficar atenta a tudo e é óbvio que eu passando aqui tantas vezes já teria, em algum momento, notado isso.
- Julie, estas coisas acontecem, já disse. Agora você vai ficar preocupada com cada pedra que você não viu como ou quando caiu em sei lá onde? Como eu disse, relaxe, assim você vai terminar neurótica, se é que consegue ficar mais do que já é! - Ele pronuncia aquelas últimas palavras com um tom sério e termina de falar puxando-a pelo braço.
- Como assim neurótica? Eu? Desde quando eu sou neurótica? Só porque eu te chamei de chato, agora você vai ficar me ofendendo com tudo? Você se considera o “senhor gênio”, aquele que tem resposta para tudo, não é? Pois fique sabendo que... - Ela finalmente explode, como ele bem queria ver. E desta maneira os dois seguiram adiante no caminho, com ela reclamando e ele rindo por dentro, mas calado. Até alcançarem a rua onde a garota morava.

 Assim que chegam a casa dela os dois percebem algo estranho, a entrada estava bastante suja, a porta também, e esta ainda apresentava diversos pontos descascados.
William, preocupado com o estado que se encontra o local, puxa a prima para trás e questiona-se o que houve ali. - Tentando amenizar a situação ele brinca com ela perguntando se, por acaso, ela andou fazendo inimizade com vizinhos e eles aproveitaram a sua ausência para uma rápida demonstração de guerra. - Seria uma brincadeira de muito mau gosto - Diz ele - Como é possível que tua porta esteja deste jeito? E o jardim, porque as flores morreram e como surgiu tanto mato? Ou isto tudo já estava assim quando nós saímos?

 Julie estava aterrorizada. Ela sabia que deixara a casa em ordem. A própria porta ela mandara pintar fazia uns dois meses, próximo a chegada do ano novo. Aquilo era impossível! Esta é mesmo a minha casa? - Perguntava-se com as duas mãos levadas à cabeça. De repente ela recua, sai para o meio da rua, na intenção de olhar o imóvel um pouco mais distante, como se tentasse reconhecê-lo. Não é possível, esta não é a minha casa. - Pensa ela mais uma vez, ao verificar aquele estado, deplorável, do imóvel.

 - Sim, Julie, esta é a tua casa, ao menos era, quando nós saímos daqui pela manhã. - William estava sério, por dentro sabia que algo errado acontecera alí, em vão, tentava demonstrar tranquilidade. - Me dá a chave. Disse ele estendendo a mão para a prima. - Vamos ver se fizeram mais alguma coisa, mas desta vez lá dentro.
- Não, pode deixar que eu mesma abro.
- De forma alguma.

 Ela olha seriamente para ele e se dirige à porta. Julie leva a mão à bolsa, encontra a chave e põe-na na fechadura, gira duas vezes. Os dois ouvem o clique, ela fecha os olhos, respira profundamente e empurra de leve para terminar de abrir aquela pesada peça de madeira que range bastante ao ser movimentada. William segura-a e passa a sua frente, adentrando na casa. Lá de dentro vem um mau cheiro insuportável.

 - Meu Deus, que cheiro horrível é este? - Diz William fazendo uma careta, enquanto lança a cebeça para trás e tapa o nariz.
- Nossa, que horrível! Parece comida estragada, misturada com mofo. - Julie sente uma forte ânsia de vômito e leva a mão à boca.

 Devido a desconfiança e aquele forte cheiro desagradável, eles aguardam alguns instantes, depois tomam de coragem e entram na casa. Lá dentro, percebem que, apesar de nada ter sido tirado do lugar, tudo está com uma camada grossa de poeira, como se abandonado por bastante tempo. As coisas que deixaram na sala, na mesa de centro, continuavam da mesma maneira. Na cozinha, encontraram comida estragada sobre a mesa, tudo cheio de bolor. A geladeira estava desligada e Julie sente nojo de abrí-la, afinal ela imaginava, mas não desejava descobrir como estaria por dentro, ainda mais após verificar que uma mancha verde estava saindo pelas laterais da porta. Há louça suja na pia com uma grande camada de fungos. Ao subirem para o primeiro andar, verificam que o banheiro e o quarto estão igualmente com aspecto abandonado. Julie começa a sentir-se muito mal, enquanto William está absorto tentando descobrir o motivo de toda aquela situação. Em pânico, Julie corre para fora da casa,mal saiu e já começa a vomitar. William que, imediatamente, seguiu-a pára um pouco atrás e leva as duas mãos ao rosto, baixando a cabeça, apreensivo. Depois de vomitar, a garota começa a chorar, então o primo se aproxima, abraça-a por trás e leva-a de volta para dentro da casa, tentando evitar chamar atenção dos vizinhos. Ela tremia. Tremia e chorava em soluços. Ele não sabia o que dizer, muito menos o que fazer em uma situação como aquela. Após um tempo, ela diminuiu o choro e tenta respirar profundamente.

 - Calma, - Diz William, em vão, tentando amenizar aquela, incompreensível, circunstância. - Tudo se resolverá. - Ela nada responde. Ele então abraça-a mais forte, como se quisesse protegê-la de algo que nem mesmo sabia do que se tratava. Era tudo tão inexplicável, por mais que ele tentasse entender, por mais que raciocinasse e evitasse deixar-se dominar pela emoção, ele não encontrava uma resposta racional para aquilo.

 De repente, eles escutam uma voz vinda do lado de fora da casa:

 - Aqui é a polícia! Sabemos que estão na casa e portanto saiam com as mãos para cima. Vocês estão cercados!

 Como não entenderam, permaneceram parados, olhando na direção da janela, que estava fechada e tapada pela cortina.

 - Vocês me ouviram? Repito, vocês dois que estão na casa AP1318, saiam com as mãos para cima, não tentem nada, a casa foi toda cercada e vocês não têm por onde fugir.

 Julie frânzi a sombrancelha e olha para William, sem nada entender. Aquele era um dia mais que atípico, pensa ela, o que mais poderia acontecer?

 - William, é a minha casa, estão falando conosco. - Ela balança a cabeça negativamente e se questiona porque e o que a polícia fazia alí.  - Eu vou lá fora. Certamente algum vizinho não me reconheceu ou achou algo estranho, então ligou para denunciar. Venha, vamos resolver isto. - Antes que ela concluísse o primeiro passo William a segura:
- Não, espere. Muita coisa esquisita tem acontecido hoje. Fique aqui, deixe-me olhar e tentar compreender o que está acontecendo lá fora.

 William vai até a janela e afasta um pouco a cortina para tentar verificar ou identificar algo na rua, mas não consegue ver nada por conta do excesso de sujeira que ali, também, juntara. Resolve, então, tirar um pouco daquele pó, com a mão, ao que ouve um barulho e a janela onde ele está se espatifa em vários pedaços diante dele. Julie dá um grito e deita no chão. William se abaixa imediatamente por conta do susto e logo aquele primeiro tiro é seguido por vários outros que começam a quebrar tudo dentro da casa.

 - Meu Deus! O que é isso? Porque estão atirando na gente? - Grita Julie, deitada no chão, bastante assustada.
- Não sei! - Responde William, tentando não entrar em pânico - Mas precisamos sair daqui de qualquer maneira!

 William arrasta-se até alcançar a prima e tenta protegê-la utilizando o seu próprio corpo, em seguida aponta para o sofá e para trás dele eles vão, ainda se arrastando. Os tiros param por alguns instantes. Enquanto isso, na frente da casa, dentro de uma viatura estava um homem, com uma arma apontada para a janela por onde os tiros entraram. Ele sai do veículo, mantendo a arma em posição estratégica e cuidadosamente caminha em direção ao imóvel. Ao chegar na porta ele chuta para terminar de abrí-la e grita “Parados!”. - Droga! - Diz logo em seguira, pois percebe a porta dos fundos aberta, certamente os dois fugiram por ela. Ele retorna ao carro para segui-los dando a volta na rua para sair na detrás. Quando alcança o outro lado consegue avistá-los ao longe, já estavam virando a outra esquina à uns 50 metros dele.

 Ao retornarmos alguns instantes na história, veremos Julie e William deitados, atrás do sofá que já havia sido perfurado por dois tiros, na sua parte superior. Julie, nervosa, começa a chorar baixinho, enquanto William procura um lugar melhor para os dois se protegerem. Ele lembra da escada e ao olha para trás tentando localizar a posição exata para onde deveriam correr, é quando vê uma porta que dá para o jardim dos fundos. Era uma chance de eles sairem dalí. Ele pensa um pouco, recorda-se que a voz havia dito que a casa estava cercada, não obstante ele não escutou nenhum tiro vindo de lá. A casa era de esquina e na rua detrás havia uma pequena área, um terreno que nunca fora vendido. Ele toca na prima que olha para ele ainda chorosa. William aponta para a porta e ela entende o que ele quer dizer. De repente os tiros cessam. “É agora, esta é a nossa chance de sair daqui”. Pensa William. Julie, como se tivesse escutado aquela afirmação, balança a cabeça afirmativamente. - Vamos. - Diz ele já levantando a prima, os dois saem correndo, mas meio abaixados. William permanece protegendo a prima, ainda, utilizando seu próprio corpo. Eles notam que, apesar do aviso, não há ninguém no quintal, então eles pulam o muro e correm para a esquina mais distante da casa. - Venha, por aqui, diz a garota segurando a mão do rapaz e já virando a rua.

 Enquanto isso, dentro do veículo, o homem arranca com o carro para perseguir-los, naquela velocidade ele seria capaz de alcançar os dois antes mesmo que eles terminassem de virar a esquina, mas ao chegar no canto da via pública não encontrou mais ninguém. Os dois desapareceram. - Droga! - Diz ele mais uma vez, ao mesmo tempo em que dá um forte murro no volante. Não os vendo em nenhuma direção, ele pega o celular e disca. Do outro lado, uma mulher atende.

 - Eles escaparam - diz o homem.

 - Tudo bem - responde a mulher friamente. - Ao menos, agora, temos a confirmação de que ela está viva. Volte imediatamente, precisamos analisar a situação e verificar o que faremos.

 ***

 Um barulho forte é ouvido quando Julie e William caem sobre o capô de um carro estacionado.

 - O que foi isso, Julie? - Diz William fazendo uma careta de dor e puxando a prima para mais próximo dele.
- Eu não sei, William! - Responde ela, tremendo bastante. - Onde nós estamos?

 Uma multidão de curiosos se forma ao redor dos dois. Assustados, eles se olham e observam ao redor. Notam que estão sobre um carro de luxo, estacionado em um saguão de um shopping center, em uma exposição de automóveis. Sem entender como, eles estavam no interior do mesmo shopping que foi construído no lugar onde supostamente deveria estar a casa dos pais de Julie. Aquele mesmo edifício de onde, há algumas horas, eles acabaram de sair.

 

 VI

 Mais de dez minutos se passaram e o homem ainda estava sentado ao volante do carro após receber a ordem de voltar e desligar o telefone. Ele não conseguia entender como duas pessoas podiam simplesmente desaparecer sem deixar nenhum tipo de vestígio. A rua diante de si não oferecia nenhuma possibilidade de fuga ou esconderijo, visto que não haviam becos ou espaços vazios, nem sequer um muro que eles poderiam ter pulado. Os únicos locais que poderiam talvez servir de alguma forma de esconderijo seriam os bueiros, mas as tampas estavam soldadas. Incrivelmente algumas pessoas estavam roubando as tampas de bueiro pela cidade, sabe-se lá para que, de modo que a prefeitura resolveu soldá-las. Isso dificultava uma eventual manutenção, mas resolvia o problema do sumiço das tampas.

 Depois de mais alguns instantes ele ligou o carro, deu meia volta e dirigiu-se para onde a voz feminina o havia ordenado.

 ***

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Não existem perguntas imbecis

(Carl Sagan)

Na áfrica oriental, os registros das pedras que datam de uns 2 milhões de anos atrás, pode-se encontrar uma sequência de ferramentas trabalhadas que os nossos ancestrais projetaram e executaram. As suas vidas dependiam da manufatura e do emprego dessas ferramentas. Eram, é claro, a tecnologia da Idade da Pedra Lascada. Com o tempo, pedras especialmente moldadas foram usadas para apunhalar, picar, lascar, cortar, esculpir. Embora haja muitas maneiras de fabricar ferramentas de pedra, o extraordinário é que em determinada região, durante longos intervalos de tempo, elas foram feitas da mesma maneira – o que significa que devia haver instituições educacionais há centenas de milhares de anos, mesmo que fossem basicamente um sistema de aprendizado. Embora seja fácil exagerar as semelhanças, é também fácil imaginar o equivalente dos professores e estudantes vestidos com tangas, cursos de laboratório, exames, reprovações, cerimônias de formatura e pós-graduação.

Quando o treinamento se mantém inalterado por longos períodos, as tradições são transmitidas intatas para a próxima geração. Mas quando o que precisa ser aprendido muda com rapidez, especialmente no curso de uma única geração, torna-se muito difícil saber o que ensinar e como ensiná-lo. Então os estudantes se queixam da relevância: diminui o respeito pelos mais velhos. Os professores se desesperam ao constatar como os padrões educacionais se deterioram e como os estudantes se tornam apáticos. Num mundo em transição, tanto os estudantes como os professores precisam ensinar a si mesmos uma habilidade essencial – precisam aprender a aprender.

À exceção das crianças (que não sabem o suficiente para deixar de fazer as perguntas importantes), poucos de nós passam muito tempo pensando por que a Natureza é como é; de onde veio o Cosmos, ou se ele sempre existiu; se o tempo vai um dia voltar atrás, e os efeitos vão preceder as causas; ou se há limites elementares para o que os humanos podem conhecer. Há até crianças, e eu conheci algumas delas, que desejam saber como é um buraco negro; qual é o menor pedaço de matéria; por que nos lembramos do passado, mas não do futuro; e por que há um Universo.

De vez em quando, tenho a sorte de lecionar num jardim-de-infância ou numa classe do primeiro ano primário. Muitas dessas crianças são cientistas natos – embora tenham mais desenvolvido o lado da admiração que o do ceticismo. São curiosas, intelectualmente vigorosas. Perguntas provocadoras e perspicazes saem delas aos borbotões. Demonstram enorme entusiasmo. Sempre recebo uma série de perguntas encadeadas. Elas nunca ouviram falar da noção de “perguntas imbecis”.

Mas, quando falo a estudantes do último ano do secundário, encontro algo diferente. Eles memorizam os “fatos”. Porém, de modo geral, a alegria da descoberta, a vida por trás desses fatos, se extinguiu em suas mentes. Perderam grande parte da admiração e ganharam muito pouco ceticismo. Ficam preocupados com a possibilidade de fazer perguntas “imbecis”; estão dispostos a aceitar respostas inadequadas; não fazem perguntas encadeadas; a sala fica inundada de olhares de esguelha para verificar, a cada segundo, se eles tem aprovação de seus pares. Vem para a aula com as perguntas escritas em pedaços de papel que sub-repticiamente examinam, esperando a sua vez, e sem prestar atenção à discussão em que seus colegas estão envolvidos naquele momento.

Algo aconteceu entre o primeiro ano primário e o último ano secundário, e não foi apenas a puberdade. Eu diria que é, em parte, a pressão dos pares para não se sobressair (exceto nos esportes); em parte, o fato de a sociedade ensinar gratificações a curto prazo; em parte, a impressão de que a ciência e a matemática não vão dar a ninguém um carro esporte; em parte, que tão pouco seja esperado dos estudantes; e, em parte, que haja poucas recompensas ou modelos de papéis para uma discussão inteligente sobre a ciência e a tecnologia – ou até para o aprendizado em si mesmo. Os poucos que continuam interessados são difamados como nerds, geeks ou grinds*.

Mas há outra coisa: conheço muitos adultos que ficam desconcertados quando as crianças pequenas fazem perguntas científicas. Por que a Lua é redonda?, perguntam as crianças. Por que a grama é verde? O que é um sonho? Até onde se pode cavar um buraco? Quando é o aniversário do mundo? Por que nós temos dedos nos pés? Muitos professores e pais respondem com irritação ou zombaria, ou mudam rapidamente de assunto: “Como é que você queria que a Lua fosse, quadrada?”. As crianças logo reconhecem que de alguma forma esse tipo de pergunta incomoda os adultos.

Novas experiências semelhantes, e mais uma criança perde o interesse pela ciência. Por que os adultos tem de fingir onisciência diante de crianças de seis anos é algo que nunca vou compreender. O que há de errado em admitir que não sabemos alguma coisa? A nossa auto-estima é assim tão frágil?

Além do mais, muitas dessas perguntas se referem a problemas profundos da ciência, alguns dos quais ainda não estão plenamente resolvidos. A razão para a Lua ser redonda tem a ver com o fato de a gravidade ser uma força central que puxa para o meio de qualquer mundo, e com o grau de resistência das rochas. A grama é verde por causa do pigmento clorofila, é claro – todos nós tivemos essa informação martelada em nossas cabeças na escola secundária –, mas por que as plantas tem clorofila? Parece tolice, uma vez que o Sol produz sua energia máxima na parte amarela e verde do espectro. Por que as plantas, em todo o mundo, deveriam rejeitar a luz solar em seus comprimentos de onda mais abundantes? Talvez seja um acidente consolidado da antiga história da vida sobre a Terra. Mas há algo que ainda não compreendemos sobre a cor da grama.

Há muitas respostas melhores do que fazer a criança sentir que está cometendo um erro social crasso ao propor perguntas profundas. Se temos uma ideia da resposta, podemos tentar explicar. Uma tentativa mesmo incompleta proporciona nova confiança e encorajamento. Se não temos ideia da resposta, podemos procurar na enciclopédia. Se não temos enciclopédia, podemos levar a criança para a biblioteca. Ou podemos dizer: “Não sei a resposta. Talvez ninguém saiba. Quando você crescer, será talvez a primeira pessoa a descobrir tal coisa”.

Há perguntas ingênuas, perguntas enfadonhas, perguntas mal formuladas, perguntas propostas depois de uma inadequada autocrítica. Mas toda pergunta é um grito para compreender o mundo**. Não existem perguntas imbecis.

As crianças inteligentes e curiosas são um recurso nacional e mundial. Precisam receber cuidados, ser tratadas com carinho e estimuladas.  Mas o mero estímulo não é suficiente. Temos de lhes dar também as ferramentas essenciais com que pensar. “É oficial”, diz a manchete de um jornal. “Nós somos péssimos em ciência”. Em testes feitos com adolescentes comuns de dezessete anos em muitas regiões do mundo, os Estados Unidos ficaram em último lugar em álgebra. Em testes idênticos, as crianças norte-americanas conseguiram a média de acertos de 43% e seus colegas japoneses a de 78%. Pelo meu sistema de avaliação, 78% é bastante bom – corresponde a um C+, ou talvez até a um B-; 43% é um F. Num teste de química, apenas os estudantes de duas das treze nações participantes se saíram pior do que os norte-americanos. Grã-Bretanha, Cingapura e Hong Kong tiveram resultados tão bons que quase ficaram fora da escala, e 25%dos canadenses de dezoito anos sabiam tanta química quanto 1% de norte-americanos seletos do último ano secundário (no seu segundo curso de química, e a maioria deles em programas de classes “avançadas”). As melhores dentre as vinte classes de quinta série em Minneapolis foram ultrapassadas por todas as vinte classes em Sendai, Japão, e por dezenove das vinte classes em Taipei, Taiwan. Os estudantes  Sulcoreanos ficaram muito à frente dos estudantes norte-americanos em todos os itens de matemática e ciência, e os adolescentes de treze anos da Colômbia Britânica (a oeste do Canadá) ultrapassaram seus colegas norte-americanos em todos os campos (em algumas áreas, eles se saíram melhor do que os coreanos). Dos garotos norte-americanos, 22% dizem que não gostam da escola; apenas 8% dos coreanos afirmam o mesmo. No entanto, dois terços dos norte-americanos dizem que são “bons em matemática”, enquanto apenas um quarto dos coreanos afirmam o mesmo.

Essas avaliações pessimistas dos estudantes médios dos Estados Unidos são ocasionalmente contrabalançadas pelo desempenho de alunos brilhantes. Em 1994, os estudantes norte-americanos conseguiram um escore inédito na Olimpíada Internacional de Matemática em Hong Kong, derrotando 360 estudantes de 68 nações em álgebra, geometria e teoria dos números. Um deles, Jeremy Bem, de dezessete anos, comentou: “Os problemas de matemática são charadas lógicas. Não há rotina – é tudo muito criativo e artístico”. Porém, o que me interessa no momento não é produzir uma nova geração de cientistas e matemáticos de primeira classe, mas um público cientificamente alfabetizado. Dos adultos norte-americanos, 63% não sabem que o último dinossauro morreu antes que o primeiro ser humano aparecesse; 75% não sabem que os antibióticos matam as bactérias, mas não matam os vírus; 57% não sabem que “os elétrons são menores que os átomos”. As pesquisas de opinião mostram que aproximadamente metade dos adultos norteamericanos não sabe que a Terra gira ao redor do Sol e leva um ano para fazer a volta. Nas minhas classes de graduação na Universidade Cornell, sou capaz de encontrar estudantes inteligentes que não sabem que as estrelas se levantam e se põem à noite, nem tampouco que o Sol é uma estrela.

Devido à ficção científica, ao sistema educacional, à NASA e ao papel que a ciência desempenha na sociedade, os norte-americanos estão muito mais expostos às noções de Copérnico do que o ser humano médio. Uma pesquisa de opinião feita pela Associação de Ciência e Tecnologia da China mostra que, como na América do Norte, apenas metade dos chineses sabe que a Terra dá uma volta ao redor do Sol uma vez por ano. É bem possível, portanto, que mais de quatro séculos e meio após Copérnico a maioria das pessoas na Terra ainda pense, no fundo do coração, que o nosso planeta permanece imóvel no centro do Universo e que somos profundamente “especiais”.

Essas perguntas são típicas em “alfabetização científica”. Os resultados são estarrecedores. Mas o que elas medem? A memorização de opiniões de autoridades sobre o assunto. O que se devia perguntar é como sabemos que os antibióticos fazem distinção entre os micróbios, que os elétrons são “menores” que os átomos, que o Sol é uma estrela em torno da qual a Terra descreve uma órbita uma vez por ano. Essas perguntas são um tesouro muito mais verdadeiro da compreensão pública da ciência, e os
resultados desses testes seriam indubitavelmente ainda mais desanimadores.

Se aceitamos a verdade literal de toda e qualquer palavra da Bíblia, então a Terra deve ser chata. O mesmo vale para o Corão. Dizer que a Terra é redonda significa ser ateísta. Em 1993, a suprema autoridade religiosa da Arábia Saudita, o xeque Abdel-Aziz Ibn Baaz, emitiu um um edito, fatwa, declarando que o mundo é chato. Todos os adeptos da hipótese da Terra redonda não acreditam em Deus e devem ser punidos. Entre muitas outras ironias, está o fato de que a evidência lúcida de que a Terra é uma esfera, reunida pelo astrônomo greco-egípcio Claudio Ptolomeu no século II, foi transmitida para o Ocidente por astrônomos muçulmanos e árabes. No século IX, eles deram ao livro de Ptolomeu em que é demonstrada a esfericidade da Terra o nome de Almagesto, “o maior”.

Conheço muitas pessoas que se sentem ofendidas com a evolução, que preferem apaixonadamente ser uma obra pessoal de Deus a ter surgido do lodo por forças físicas e químicas cegas ao longo das eras. Eles também tendem a evitar o contato com a evidência. Esta tem pouco a ver com a questão: o que elas querem que seja verdade, elas acreditam que é verdade. Somente 9% dos norte-americanos aceitam a descoberta central da biologia moderna de que os seres humanos (e todas as outras espécies) evoluíram lentamente de uma sucessão de seres mais antigos por meio de processos naturais, sem que a intervenção divina fosse necessária ao longo do caminho. (Perguntados se aceitam a evolução, 45% dos norte-americanos respondem que sim. O índice é de 70% na China.) Quando o filme Jurassic Park  foi exibido em Israel, alguns rabinos ortodoxos o condenaram, porque aceitava a evolução e porque ensinava que os dinossauros viveram há 100 milhões de anos – quando, como se afirma claramente em todo o Rosh Hashanah e toda cerimônia de casamento judaica, o Universo tem menos de 6 mil anos. A evidência mais clara de nossa evolução pode ser encontrada em nossos genes. Mas a evolução ainda é contestada, ironicamente, por aqueles cujo próprio DNA a proclama – nas escolas, nos tribunais, nas editoras de livros didáticos e nas discussões sobre quanta dor podemos infligir a outros animais sem transgredir algum limiar ético.

Durante a Grande Depressão, os professores gozavam de emprego seguro, bons salários, respeitabilidade. Ensinar era uma profissão admirada, em parte porque se reconhecia que a educação era o caminho para sair da pobreza. Pouco disso é verdade hoje em dia. E assim o ensino da ciência (e de outras disciplinas) é muitas vezes ministrado de forma incompetente ou pouco inspirada, pois, espantosamente, seus profissionais tem pouca ou nenhuma formação nas próprias disciplinas, mostram-se impacientes com o método, tem pressa de chegar às descobertas da ciência – e às vezes são eles mesmos incapazes de distinguir a ciência da pseudociência. Aqueles que tem a formação adequada em geral conseguem empregos mais bem pagos em outros lugares.

As crianças precisam de prática com o método experimental. Não basta apenas ler sobre ciência nos livros. Nós podemos receber a informação de que é a oxidação da cera que explica a chama da vela. Mas temos uma ideia muito mais vívida do que acontece se vemos a vela queimar por alguns instantes numa redoma de vidro, até o dióxido de carbono rodear o pavio, bloquear o acesso ao oxigênio, a chama tremeluzir e se apagar. Nós podemos assistir a uma aula sobre as mitocôndrias nas células, sobre o fato de elas mediarem a oxidação dos alimentos como a chama que queima a cera, mas é outra coisa vê-las no microscópio. Nós podemos ouvir que o oxigênio é necessário para a vida de alguns organismos, mas para outros não. Mas começamos realmente a compreender quando testamos a proposição numa redoma de vidro totalmente esvaziada de oxigênio. O que o oxigênio realiza para nós? Por que morremos sem oxigênio? De onde vem o oxigênio no ar? Qual é a garantia de nosso suprimento?

A experimentação e o método científico podem ser ensinados em muitas outras disciplinas além da ciência. Daniel Kunitz é um amigo dos meus tempos de universidade. Passou a vida fazendo um trabalho inovador como professor de ciências sociais nos dois últimos anos do curso secundário. Os alunos querem compreender a Constituição dos Estados Unidos? Podemos lhes dar a tarefa de ler a Constituição, artigo por artigo, e depois discutir em aula – mas, lamentavelmente, isso fará a maioria dos estudantes cair no sono. Ou podemos tentar o método de Kunitz: proibimos os alunos de ler a Constituição. Em vez da leitura, determinamos que participem de uma assembléia constituinte, dois para cada estado. Damos informações detalhadas a cada um dos treze grupos sobre os interesses particulares de seu estado e região. A delegação da Carolina do Sul, por exemplo, seria informada da primazia do algodão, da necessidade e da moralidade do tráfico de escravos, do perigo representado pelo Norte industrial, e assim por diante. As treze delegações se reúnem e, com um pouco de ajuda dos professores, mas principalmente por sua própria conta, redigem uma constituição em algumas semanas. Só então leem a Constituição real. Os estudantes reservaram os poderes de declarar guerra ao presidente. Os delegados de 1787 atribuíram esses poderes ao Congresso. Por quê? Os estudantes libertaram os escravos. A constituinte original não o fez. Por quê? Isso requer mais preparação da parte dos professores e mais trabalho da parte dos alunos, mas a experiência é inesquecível. É difícil não pensar que as nações da Terra estariam em melhor forma se todo cidadão passasse por algo
semelhante.

Precisamos de mais dinheiro para a formação e os salários dos professores, e para os laboratórios. Mas, em todos os Estados Unidos, vota-se regularmente contra as emissões de títulos para a educação. Ninguém sugere que impostos sobre a propriedade sejam usados para financiar o orçamento militar, os subsídios agrícolas ou a remoção de lixo tóxico. Por que apenas para a educação? Por que não financiá-la com impostos gerais em âmbito municipal e estadual? E que dizer de um imposto especial da educação para aquelas indústrias que tem necessidades especiais de operários tecnicamente qualificados?

Os colegiais norte-americanos não estudam o suficiente. Há 180 dias no ano escolar padrão nos Estados Unidos, em comparação a 220 na Coréia do Sul, cerca de 230 na Alemanha e 243 no Japão. As crianças, em alguns desses países, vão para a escola aos sábados. O aluno norte-americano médio da escola secundária passa 3,5 horas por semana fazendo dever de casa. O tempo total dedicado aos estudos, dentro e fora da sala de aula, é de aproximadamente vinte horas semanais. Os alunos japoneses da quinta série estudam em média 33 horas por semana. O Japão, com metade da população dos Estados Unidos, forma anualmente duas vezes mais cientistas e engenheiros com diplomas superiores.

Durante os quatro anos da escola secundária, os alunos estadunidenses dedicam menos de 1500 horas a disciplinas como matemática, ciência e história. Os japoneses, franceses e alemães gastam com elas mais do que o dobro desse tempo. Um relatório de 1994, encomendado pelo Departamento de Educação dos Estados Unidos, observa:

O dia escolar tradicional deve agora se adaptar a todo um conjunto de exigências, necessárias para o que se tem chamado “o novo trabalho das escolas” –  educação acerca de segurança pessoal, questões dos consumidores, AIDS, conservação e energia, vida familiar e curso de motorista.

Assim, devido às deficiências da sociedade e às insuficiências da educação em casa, apenas cerca de três horas por dia são dedicadas, na escola secundária, às disciplinas acadêmicas básicas.

Há uma percepção disseminada de que a ciência é “demasiado difícil” para as pessoas comuns. Podemos ver essa idéia refletida na estatística de que apenas uns 10% dos alunos norte-americanos da escola secundária optam por um curso de física. O que torna a ciência de repente “demasiado difícil”? Por que não é demasiado difícil para os cidadãos de todos esses outros países que tem um desempenho superior ao dos Estados Unidos? O que aconteceu com o talento norte-americano para as ciências, a inovação técnica e o trabalho árduo? Os norte-americanos se orgulhavam outrora de seus inventores, que foram pioneiros ao criar o telégrafo, o telefone, a luz elétrica, o toca-discos e o automóvel. À exceção dos computadores, tudo isso parece coisa do passado. Para onde foi toda a “engenhosidade ianque”?

A maioria das crianças norte-americanas não é estúpida. Parte da razão de não estudarem muito é que recebem poucos benefícios tangíveis quando o fazem. Hoje em dia, a competência (isto é, conhecer realmente o assunto) em habilidades verbais, matemática, ciência e história não aumenta o salário dos jovens nos primeiros oito anos depois da escola secundária – e muitos não se empregam na industria, mas no setor de serviços.

Nos setores produtivos da economia, porém, a história é muitas vezes diferente. Há fábricas de móveis, por exemplo, que correm o risco de serem fechadas – não por falta de clientes, mas porque poucos operários novatos sabem fazer as operações aritméticas mais simples. Uma grande companhia de produtos eletrônicos informa que 80% de seus candidatos a postos de trabalho não conseguem passar num teste de matemática da quinta série. Os Estados Unidos já estão perdendo uns 40 bilhões por ano (principalmente em falta de produtividade e no custo da educação corretiva) porque os operários, num grau excessivo, não sabem ler, escrever, contar, nem pensar.

Num levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Ciência dos Estados Unidos em 139 companhias norte-americanas de alta tecnologia,as principais causas do declínio da pesquisa e do desenvolvimento, passíveis de serem atribuídas à política nacional, foram (1) falta de uma estratégia de longo prazo para lidar com o problema; (2) pouca atenção dada ao treinamento de futuros cientistas e engenheiros; (3) investimento excessivo na “defesa”, e insuficiente na pesquisa e no desenvolvimento civil; e (4) pouca atenção dada à educação básica. A ignorância se alimenta de ignorância. A fobia da ciência é contagiosa.

Nos Estados Unidos, aqueles que têm uma visão mais favorável da ciência tendem a ser homens brancos, jovens, ricos, com educação superior. Mas, na próxima década, três quartos dos novos operários norte-americanos serão mulheres, não-brancos e imigrantes. Deixar de despertar o seu entusiasmo – sem falar da discriminação contra eles – não é apenas injusto, é também estúpido e um fracasso infligido à própria nação. Priva a economia de trabalhadores qualificados desesperadamente necessários.

Hoje em dia, os alunos afro-americanos e hispânicos estão conseguindo resultados significativamente melhores em testes de ciências padronizados do que no final dos anos 60, mas são os únicos. Nos testes de matemática, a diferença média entre os norte-americanos brancos e negros que se formam na escola secundária ainda é imensa – de dois a três níveis escolares; mas a diferença entre os norte-americanos brancos que se formam na escola secundária e os formandos do mesmo grau no Japão, Canadá, Grã-Bretanha ou Finlândia é mais do que o dobro (com os alunos estadunidenses em posição de desvantagem). Se alguém é insuficientemente motivado e educado, não vai aprender muito – não há mistério a esse respeito. Os afro-americanos suburbanos que tem pais com educação de nível superior apresentam o mesmo desempenho na escola  superior que os brancos suburbanos que têm os pais com educação de nível superior. Segundo algumas estatísticas, inscrever uma criança pobre num programa Head Start (Início Favorável) duplica as suas chances de se empregar mais tarde na vida; quem completa um programa Upward Bound (Sequência Ascendente) tem quatro vezes mais probabilidades de conseguir uma educação superior. Se levamos a questão a sério, sabemos o que fazer.

E o que dizer da faculdade e da universidade? Há passos óbvios a serem tomados: status mais elevado pelo sucesso do ensino ministrado e promoções de professores baseadas no desempenho de seus alunos em testes padronizados, duplamente cegos; salários de professores que se aproximem do que poderiam ganhar na indústria; mais bolsas de estudos, bolsas de especialização e equipamentos de laboratório; currículos e livros didáticos imaginativos e inspiradores, em cujo planejamento os principais membros do corpo docente desempenhem um papel importante; cursos de laboratório obrigatórios para quem deseja se formar; e atenção especial dada aos que  são tradicionalmente afastados da ciência. Deveríamos também estimular os melhores cientistas acadêmicos a se dedicar mais à educação pública – livros didáticos, conferências, artigos nos jornais e revistas, apresentações na TV. E talvez valesse a pena tentar um curso obrigatório sobre o pensamento cético e os métodos da ciência no primeiro e segundo anos da faculdade.

O místico William Blake fixou os olhos no Sol e viu anjos, enquanto outros, mais mundanos, “perceberam apenas um objeto que tinha mais ou menos o tamanho e a cor de uma moeda dourada”. Blake realmente viu anjos no Sol, ou foi um erro perceptivo e cognitivo? Não conheço nenhuma fotografia do Sol que mostre alguma coisa desse tipo. Blake viu o que a câmera e o telescópio não conseguem ver? Ou a explicação está muito mais no interior da cabeça dele do que no exterior? E a verdade sobre a natureza do Sol revelada pela ciência moderna não é muito mais maravilhosa? Não se trata apenas de anjos ou de uma moeda de ouro, mas de uma enorme esfera em que 1 milhão de Terras poderiam ser acondicionadas, em cujo âmago os  núcleos ocultos dos átomos são comprimidos, o hidrogênio é transfigurado em hélio, a energia latente no hidrogênio há bilhões de anos é liberada, e com isso a Terra e os outros planetas são aquecidos e iluminados, sendo o mesmo processo repetido 400 bilhões de vezes em outras partes da galáxia e da Via Láctea.

Para nos construir do nada, os esquemas, as instruções detalhadas e as ordens de tarefas preencheriam uns mil volumes de enciclopédias, se escritos em inglês. No entanto, toda célula de nosso corpo tem um conjunto dessas enciclopédias. Um quasar está tão distante que a luz percebida começou a sua viagem intergalática antes de a Terra ser formada. Toda pessoa na Terra descende dos mesmos ancestrais, não exatamente humanos, que viveram na África oriental há milhões de anos, o que nos torna todos primos.

Sempre que penso em qualquer uma dessas descobertas, vibro de alegria. Meu coração dispara. Não posso evitar. A ciência é um assombro e um prazer. Toda vez que uma nave espacial passa por um novo mundo, eu me surpreendo maravilhado. Os cientistas planetários se perguntam: “Oh, ele é assim, então? Por que não pensamos nisso?”. Mas a Natureza é sempre mais sutil, mais intrincada, mais elegante do que a nossa imaginação. Considerando-se as nossas manifestas limitações humanas, o surpreendente é termos sido capazes de penetrar tão fundo nos segredos da Natureza.

Quase todos os cientistas experimentaram, num momento de descoberta ou compreensão repentina, um assombro reverente. A ciência – a ciência pura, a ciência sem nenhuma aplicação prática, a ciência pela ciência – é uma questão profundamente emocional para aqueles que a praticam, bem como para aqueles que, mesmo não sendo cientistas, de vez em quando folheiam artigos para ver o que foi descoberto recentemente.

E, como numa história de detetive, é uma alegria formular perguntas-chaves, elaborar as explicações alternativas e talvez até acelerar o processo de descoberta científica. Considerem-se estes exemplos, alguns muito simples, outros nem tanto, escolhidos mais ou menos ao acaso:

  • Poderia haver um número inteiro ainda não descoberto entre 6 e 7?
  • Poderia haver um elemento químico ainda não descoberto entre o número atômico 6 (que é o carbono) e o número atômico 7 (que é o nitrogênio)?
  • Sim, o novo conservante causa câncer em ratos. Mas e se, para induzir o câncer, for preciso dar a uma pessoa, que pesa muito mais do que um rato, quase quinhentos gramas da substância por dia? Nesse caso, talvez o novo conservante não seja assim tão perigoso. A vantagem de ter alimentos conservados por longos períodos seria mais importante do que o pequeno risco adicional de câncer? Quem decide? Que dados são necessários para tomar uma decisão prudente?
  • Numa pedra de 3,8 bilhões de anos, descobre-se uma taxa de isótopos de carbono típica dos seres vivos atuais e diferentes dos sedimentos inorgânicos. Deduzimos que havia vida abundante na Terra há 3,8 bilhões de anos? Ou os resíduos químicos de organismos mais modernos teriam se infiltrado na pedra? Ou há outro modo de os isótopos se separarem na pedra, além dos processos biológicos?
  • As medições sensíveis das correntes elétricas no cérebro humano mostram que certas regiões dele entram em ação quando surgem determinadas memórias ou ocorrem processos mentais. Serão todos os nossos pensamentos, memórias e paixões gerados por circuitos específicos dos neurônios cerebrais? Será algum dia possível simular esses circuitos num robô? Será algum dia praticável inserir novos circuitos ou alterar antigos circuitos no cérebro, de modo a mudar opiniões, memórias, emoções, deduções lógicas? Essa interferência é terrivelmente perigosa?
  • A nossa teoria da origem do sistema solar prediz muitos discos achatados de gás e poeira por toda a galáxia da Via Láctea. Olhamos pelo telescópio e descobrimos discos achatados por toda parte. Concluímos alegremente que a teoria está confirmada. Mas descobre-se que os discos percebidos eram galáxias espirais muito além da Via Láctea, grandes demais para ser sistemas solares nascentes. Devemos abandonar a teoria? Ou devemos procurar um tipo diferente de disco? Ou isso é apenas a expressão de nossa relutância em abandonar uma hipótese desacreditada?
  • Um câncer em crescimento envia, em todas as direções, um comunicado para as células adjacentes aos vasos sanguíneos: “precisamos de sangue”, diz a mensagem. As células endoteliais constroem obsequiosamente pontes de vasos sanguíneos para suprir as células cancerosas de sangue. Como é que isso se processa? A mensagem pode ser interceptada ou cancelada?
  • Misturamos as tintas violeta, azul, verde, amarelo, laranja e vermelho, e produzimos um marrom escuro. Depois misturamos luzes das mesmas cores e obtemos branco. O que se passa?
  • Nos genes dos seres humanos e de muitos outros animais, há sequências longas e repetitivas de informações hereditárias (chamadas “bobagens”). Algumas dessas sequências causam doenças genéticas. Será possível que segmentos do DNA sejam ácidos nucléicos estranhos, que se reproduzem por sua própria conta e trabalham para si mesmos, desprezando o bem-estar do organismo que habitam?
  • Muitos animais se comportam de forma estranha pouco antes de um terremoto. O que eles sabem que os sismologistas não conhecem?
  • As antigas palavras asteca e grega para “Deus” são quase iguais. Isso comprova algum contato ou atributos comuns entre as duas civilizações, ou devemos esperar que essas coincidências ocasionais entre duas línguas sem nenhum parentesco aconteçam simplesmente por acaso? Ou será que certas palavras são construídas dentro de nós a partir do nascimento, como pensava Platão no Crátilo?
  • A segunda lei da termodinâmica afirma que no Universo como um todo a desordem aumenta com o passar do tempo. (Sem dúvida, mundos, vida e inteligência podem emergir em certos locais à custa de uma diminuição da ordem em outra parte do Universo.) Mas, se vivemos num Universo em que a presente expansão do Big Bang vai se tornar mais lenta, chegar ao fim e ser substituída por uma contração, a segunda lei não poderia ser então anulada? Os efeitos podem preceder as causas?
  • O corpo humano usa ácido clorídrico no estômago para dissolver os alimentos e ajudar a digestão. Por que o ácido clorídrico não dissolve o estômago?
  • Na época em que escrevo este livro, as estrelas mais antigas parecem ser mais velhas que o Universo. Como na declaração de que uma conhecida tem filhos mais velhos que ela própria, não é preciso muita erudição para reconhecer que alguém cometeu um erro. Quem?
  • Existe atualmente a tecnologia para deslocar átomos individuais, de modo que mensagens longas e complexas podem ser escritas numa escala ultramicroscópica. É também possível fazer máquinas do tamanho de moléculas. Exemplos rudimentares dessas duas “nanotecnologias” já são bem demonstrados. Aonde isso nos levará em mais algumas décadas?
  • Em vários laboratórios diferentes, descobriram-se moléculas complexas que, em circunstâncias apropriadas, fazem cópias de si mesmas nas provetas. Algumas dessas moléculas são construídas com nucleotídeos, como o DNA e o RNA; outras, não. Algumas usam enzimas para acelerar o ritmo da química; outras, não. Às vezes há um erro na cópia; daquele ponto em diante o erro é copiado em gerações sucessivas de moléculas. Por isso, começam a aparecer espécies ligeiramente diferentes de moléculas autoreplicantes, algumas das quais se reproduzem com mais rapidez ou mais eficiência do que outras. São as que prosperam preferencialmente. Com o passar do tempo, as moléculas na proveta se tornam mais e mais eficientes. Estamos começando a presenciar a evolução de moléculas. Como isso nos ajuda a compreender a origem da vida?
  • Por que o gelo comum é branco, mas o gelo glacial é azul?
  • Tem se encontrado vida quilômetros abaixo da superfície da terra. Até que profundidade ela vai?
  • Segundo um antropólogo francês, o povo dogon, na República de Mali, tem uma lenda de que a estrela Sírio possui uma estrela companheira extremamente densa. Sírio tem de fato essa companheira, embora seja necessária uma astronomia bastante sofisticada para detectá-la. Assim, (1) o povo dogon descende de uma civilização esquecida que tinha grandes telescópios ópticos e astrofísica teórica? Ou (2) foram instruídos por extraterrestres? Ou (3) os dogons ouviram de um visitante europeu a história da companheira anã branca de Sírio? Ou (4) o antropólogo francês estava enganado e os dogons na realidade nunca tiveram essa lenda?
  • Por que os cientistas têm dificuldades em transmitir a ciência? Alguns cientistas – inclusive alguns muito bons – me dizem que gostariam de divulgar a ciência, mas sentem que não tem talento nessa área. Saber e explicar, dizem, não é a mesma coisa. Qual é o segredo?


Há apenas um, na minha opinião: não falar para o público em geral como falaríamos com nossos colegas do ramo. Há termos que transmitem instantânea e acuradamente para os especialistas o que queremos dizer. Podemos analisar essas expressões todos os dias no trabalho profissional, mas elas não fazem mais do que mistificar um público de não-especialistas. Usar a linguagem mais simples possível. Acima de tudo, lembrar como é que pensávamos antes de compreender o que estamos explicando. Lembrar os equívocos em que quase caímos, e anotá-los explicitamente. Manter sempre em mente que já houve uma época em que também nada entendíamos do assunto. Recapitular os primeiros passos que nos levaram da ignorância ao conhecimento. Jamais esquecer que a inteligência inata é amplamente distribuída na nossa espécie. Na verdade, é o segredo de nosso sucesso.

O trabalho requerido é pequeno, os benefícios são grandes. Entre as armadilhas potenciais estão a simplificação exagerada, a necessidade de ser econômico com as qualificações (e as quantificações), o crédito inadequado dado aos muitos cientistas envolvidos e as distinções insuficientes traçadas entre as analogias úteis e a realidade. Sem dúvida, algumas soluções de compromisso precisam ser tomadas.

Quanto mais trabalhamos nessas transmissões, mais claro se torna quais as abordagens que funcionam e quais as que não funcionam. Há uma seleção natural de metáforas, imagens, analogias, histórias de casos. Depois de certo tempo, descobrimos que podemos chegar a quase todos os pontos que desejamos alcançar caminhando sobre pedras testadas pelos consumidores. Podemos então adaptar as nossas apresentações às necessidades de determinado público.

Como alguns editores e produtores de televisão, certos cientistas acreditam que o público é demasiado ignorante ou estúpido para compreender a ciência, que o empreendimento e a divulgação é fundamentalmente uma causa perdida, ou até que essa tentativa equivale a confraternizar com o inimigo, quando não a francamente coabitar com ele. Entre as muitas críticas que poderiam ser feitas contra esse juízo – além da sua arrogância intolerável e da sua desconsideração de inúmeros exemplos de divulgação científica extremamente bem-sucedida – está a de que ele confirma a si mesmo. E, para os cientistas envolvidos, também é contraproducente.

O apoio governamental em grande escala à ciência é algo bastante novo, que remonta apenas à Segunda Guerra Mundial – embora o patrocínio dado a alguns cientistas pelos ricos e poderosos seja muito mais antigo. Com o fim da Guerra Fria, o trunfo da defesa nacional, que fornecia apoio a todo tipo de ciência básica, tornou-se virtualmente impossível de ser empregado. Apenas em parte por essa razão, acho que a maioria dos cientistas está agora aceitando a idéia de divulgar a ciência. (Como quase todo o apoio à ciência vem dos cofres públicos, seria um estranho flerte com o suicídio se os cientistas se opusessem a uma divulgação competente.) O público fica mais inclinado a apoiar aquilo que compreende e aprecia. Não estou falando de escrever artigos para Scientific American, por exemplo, que são lidos por entusiastas da ciência e por cientistas de outras áreas. Não estou simplesmente falando de ministrar cursos de introdução para universitários. Estou falando de tentativas de comunicar a substância e o enfoque da ciência em jornais, em revistas, no rádio e na televisão, em palestras para o público em geral e nos livros didáticos das escolas primária e secundária.

Sem dúvida, há necessidade de empregar o bom senso na questão da divulgação. É importante não mistificar, nem falar com ar de superioridade. Ao tentar estimular o interesse do público, os cientistas tem ido às vezes longe demais – por exemplo, ao tirar conclusões religiosas injustificadas. O astrônomo George Smoot descreveu sua descoberta de pequenas irregularidades na radiação de rádio que restou do Big Bang como “a visão da face de Deus”. O físico Leon Lederman, laureado com o Nobel, descreveu o bóson de Higgs, um tijolo hipotético de matéria, como “a partícula de Deus”, e deu esse título a um de seus livros. (Na minha opinião, são todos partículas de Deus.) Se o bóson de Higgs não existe, a hipótese de Deus é falsa? O físico Frank Tipler propõe que em futuro remoto os computadores vão provar a existência de Deus e operar a ressurreição de nossos corpos.

Os periódicos e a televisão podem acender centelhas quando nos dão um vislumbre da ciência, o que é muito importante. Mas – à parte o aprendizado ou aulas e seminários bem estruturados – a melhor maneira de divulgar a ciência é por meio de livros didáticos, livros populares, CD-ROMs e toca-disco a laser. Pode-se ruminar a informação, seguir o próprio ritmo, rever as partes mais difíceis, comparar os textos, compreender em profundidade. Mas isso tem de ser feito de forma correta, e, sobretudo nas
escolas, não é o que acontece. Ali, como diz o filósofo John Pasmore, a ciência é frequentemente apresentada como uma questão de aprender princípios e aplicá-los em procedimentos de rotina. Ela é aprendida nos livros escolares. Não se leem as obras dos grandes cientistas, nem as contribuições diárias para a literatura científica […]. Ao contrário do humanista iniciante, o cientista iniciante não tem contato imediato com o gênio. Na realidade […] os cursos escolares podem atrair para a ciência o tipo totalmente errado de pessoa – meninos e meninas sem imaginação que gostam de rotina.

Sustento que a divulgação é bem sucedida se, num primeiro momento, não faz mais do que provocar a centelha do sentimento de admiração. Para tal, basta fornecer um vislumbre das descobertas da ciência, sem explicar em todos os seus detalhes como elas foram feitas. É mais fácil relatar o destino do que a viagem. Mas, sempre que possível, os divulgadores devem tentar relatar alguns erros, pontos de partida falsos, impasses e a confusão aparentemente irremediável ao longo do caminho. Pelo menos de vez em quando, devemos mostrar a evidência e deixar o leitor tirar a sua própria conclusão. Isso transforma a assimilação obediente do novo conhecimento em descoberta pessoal. Quando alguém faz uma descoberta por si mesmo – mesmo que seja a última pessoa na Terra a ver a luz –, jamais esquecerá.

Quando era jovem, fui inspirado pelos livros e artigos sobre ciência então populares de George Gamow, James Jeans, Arthur Eddington, J. B. S. Haldane, Julian Huxley, Rachel Carson e Arthur C. Clarke – todos com formação científica, e a maioria deles cientistas profissionais influentes. A popularidade dos livros sobre ciência que são bem escritos, bem explicados, profundamente imaginativos, que falam não só às mentes como aos corações, parece maior do que nunca nos últimos vinte anos, e o número e a diversidade disciplinar dos cientistas que redigem esses livros são igualmente inéditos. Entre os melhores cientistas divulgadores contemporâneos, penso em Stephen Jay Gould, E. O. Wilson, Lewis Thomas e Richard Dawkins, na área de biologia; Steven Weinberg, Alan Lightman e Kip Thorne, em física; Roald Hoffmann, em química; e nas primeiras obras de Fred Hoyle sobre astronomia. Isaac Asimov escreveu competentemente sobre todas as áreas. (E, embora exiga cálculo, a divulgação da ciência mais consistentemente estimulante, provocadora e inspiradora das últimas décadas me parece ser o volume 1 de Introductory lectures on physics, de Richard Fenyman). Ainda assim, os esforços atuais estão evidentemente longe de corresponder ao bem público. E, sem dúvida alguma, se não sabemos ler, não podemos aproveitar essas obras, por mais inspiradoras que sejam.

O meu desejo é que sejamos capazes de resgatar o “sr. Buckley” e os milhões de seres humanos iguais a ele. Também quero que deixemos de produzir no curso secundário alunos de raciocínio lento, desprovidos de imaginação, senso crítico e curiosidade. A nossa espécie necessita e merece cidadãos com mentes bem abertas e com uma compreensão básica de como o mundo funciona.

A ciência, na minha opinião, é uma ferramenta absolutamente essencial para qualquer sociedade que tenha a esperança de sobreviver bem no próximo século com seus valores fundamentais intatos – não apenas como é praticada pelos seus profissionais, mas a ciência compreendida e adotada por toda a comunidade humana. E se os cientistas não realizarem essa tarefa, quem o fará?

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* Gírias norte-americanas para designar pessoas chatas, desinteressantes, esquisitas e, nesse caso, estudantes muito aplicados.

** Não estou considerando a rajada de porquês que as crianças de dois anos às vezes disparam contra os pais – tentando talvez controlar o comportamento adulto.